É preciso ir à praia. Caminhar, caminhar, caminhar e chorar. É urgente dar ao corpo um outro aconchego ou melhor, um outro cuidado. Não procurar respostas, mas descobrir outras perguntas. Abrir o corpo naquilo que o apega, sutura. Sermos arqueólogxs de nós mesmos em si mesmos com os outros. Dançar as pistas que a vida humana nos dá e nos faz andar em andanças.
Estive em Manaus esses dias. Não por motivos turísticos. Não conscientemente. Para encontrar colegas de dança nas universidades, muitxs delxs amigxs, outrxs nem tanto. Fazer esse exercício vital do virar virando revirando e viver convivendo convivivendo. As diferenças aguçam-se. Muitos Brasis de pessoas em seus brasis íntimos que se (a)mostram. Concomitante, ganham relevo as desigualdades desses Brasis naquilo que nos faz indivíduo brasileirx. Senti uma energia boa e, ao mesmo tempo, me perguntei: deveria estar ali? Deveríamos?
Nas conversas não agendadas, uma aconteceu com duas colegas de dança, uma delas que eu estava mais afastado, desde 2006, quando morei em Salvador. Com ela fiz minhas primeiras aulas de Pilates. Ela lembra do meu nome com propriedade. Eu com lapso de memória com o nome dela, lembrei pouco.
Nessa conversa de bar, diga-se as melhores, conversamos muito. Na verdade, eu a ouvi muito. Um lugar de escuta no lugar de fala dela. Isso, Joubert!, disse-me. Tá na hora de você perceber o que essas teimosias da vida cotidiana estacam. Você precisa abrir o corpo, retrucou. Falou-me do veneno da rã amazônica kambô e outras tantas experiências.
Quando eu falava um pouco, ela logo se arrepiava. Corpo imune naquilo que o pode matar. Os remédios xamânicos da mata, da floresta. Está tudo em nós. Não é autoajuda, mas a si ajudar. Bem distante desse lero-lero dos mantras capitalistas das fórmulas de sucesso. A cura é por outro caminho. Mas essa escuta enquanto lugar não é meramente o de escutar, ouvir.
É de onde se estrutura essas possibilidades de ouvir o outro, essa disponibilidade, assim como no lugar de fala, que é de onde vem e como vem a fala que se escuta e a escuta que também fala. Parece que estamos sempre num limiar de virarmos bicho sendo humanos e, ao mesmo tempo, virarmos humanos sendo bicho.
Ela me disse, soteropolitamente: Tá na hora de fazer algo pra isso ai. Vá caminhar na praia, vá. Caminhe e chore. Tem muita água aí pra jorrar. E nós, em Manaus, a cidade das águas do Amazonas. Mas vá mesmo, ela reforçou. Foi uma fala verbal de uma fala xamânica. Dessas que fazem a gente não querer mais ser racional e dizer pra si mesmo: tá na hora mesmo, disse pra mim mesmo.
Pois das imagens que um acidente de carro recente me deu, a dos cactos e dos livros com areia, ela ficou ainda mais alerta. Ela, essa minha colega-xamã. Fiquei pensando muito, sem raciocinar, mas dando movimento aos pensamentos. Pensando enquanto estado de pensamentos. Dançamentos de pensamentos de vida. Corpo em sinapses corporais. Muita coisa está acontecendo no mundo. Crianças separadas de seus pais ou uma, com a roupa da escolha, assassinada por um policial.
Pois quando muita coisa acontece, ficamos na descrição desse acontecido e não lembramos que o que acontece é da ordem do não narrável, mesmo que dizível. Pra virar bicho, se indignar, soltar essas raivas ditas não-humanas, há de ter muita coragem. Porque se somos todos humanos, no saber indígena, tudo parece absurdamente assustador e perigosamente imprevisível.
Ouvimos muitos sobre pessoas que se assemelham a um lobo na pele de cordeiro. Essa expressão é uma metáfora que nos diz que há também o inverso: o cordeiro na pele do lobo. Se viramos bicho do primeiro jeito, como nem sempre prestamos atenção ao segundo jeito? Ou seja, um lobo que se faz de cordeiro mostra-se inofensivo, mas não é tanto. Um cordeiro na pele de lobo mostra-se perigoso, mas não é tanto. A verdade é que somos lobo e cordeiro tudo junto, nessa relação presa e predador de muitos outros bichos, muitas outras consciências.
Isso muda tudo. Virar bicho é mudar de perspectiva.
Sinto raivas. E quando as sinto, meu corpo se transforma. A raiva dá nascimento a um bicho cheio de mágoas e feridas. Dá nascimento também a um sentimento que não é meu, mas que eu agarro como se fosse. Fazer nascer o bicho em nós é sentir essas raivas. Raivas das nossas injustiças. Se pego pra mim é porque ainda a quero comigo. Tentei não fazer, mas foi em vão. Virar bicho me parecer ser agora uma dança raivosa de imprevisibilidades.
Se junto essas imagens que vem surgindo desde 01 de maio desse ano, tenho um corpo semiose. Cactos. Livro. Areia. Estrada. Água. Avião. Pássaro. Sono. Quase morte. Em certa medida, todo acontecimento de vida, antes de ser descrição, é uma torrente de signos-imagens. Um vir à tona de nosso inconsciente estético. Está tudo lá, está tudo aqui. Lá, aqui, agora.
Pois se ainda magoa, e vai magoar ainda muito, essa palavra traz uma sonoridade de água: toda mágoa precisa de água. Mágua!
Porque “debaixo d’água tudo era mais bonito, mais azul mais colorido”. Na água sentimos falta, porque na água, o que nos falta é respirar. A água, essas mágoas aguadas (máguas), forma-se um feto, “sereno confortável amado completo, sem chão sem teto sem contato com o ar”. “Mas tinha que respirar”. “Só faltava respirar”. Só, sós.
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