Na última sexta-feira fiz um test drive para um novo carro. Fui mais pela experiência do que pela decisão de comprar. Foi um dia bom daqueles em que saímos sem pressa e tudo parece fluir com certa leveza. Chegando lá começou o mise-en-scène (mise-en-cor) do marketing e esse sonho iludido de um novo carro. Das conversas, veio as simpatias.

Como desestabilizar essa espetaculização do cotidiano quando as pessoas deixam de ser pessoas para serem indivíduos monetários?

No se achegar, erraram meu nome. Quero dizer, a pronúncia. Depois me trataram como parte da família da marca do carro. Mas já falei logo que tive um acidente de carro em maio último e que ainda estava receoso. Logo veio um Deus abençoe por nada ter acontecido com você. Até gostei, porque foi mesmo uma benção, uma quase morte, um nascer de novo.

A questão é quando esse sentimento de nova vida é logo capturado por uma espécie de marketing da compensação. Mas eu estava vacinado e fui empreendendo empatias com as duas vendedoras, que deram um google no meu nome e disseram: tu é top! Apenas sorri. 

De repente, olhei pra elas e pra todas as pessoas em minha volta, entre vendedoras e clientes, e vi uma selva de desejos disfarçados de necessidades, ao mesmo tempo de corpos circundantes que pareciam querer desvendar algum segredo para ganhar sua comissão. Foi engraçado e também assustador. Caça e caçadoras. Carros rodantes e corpos andantes. Metamorfoses de corpos pedestres em corpos-máquinas automóveis. Tudo natural, tudo artificial, tudo humano, tudo animal.

Gosto de assistir aos programas no National Geographic, aquele canal de televisão por assinatura sobre ciência, tecnologia e, principalmente, meio ambiente e mundo animal. Tem um jeito zoológico de mostrar os jeitos bichos ao céu aberto. O mais comum são as savanas africanas.

Mas quando mudamos um pouco, ou muito, nosso ponto de vista, aqueles animais selvagens são mesmo é humanos como nós, e nós animais selvagens como eles. Na hora do perigo, ser hábil em sobreviver vivendo é o que faz permanecer. As velocidades, as espreitas, os carinhos com os filhotes, o trabalho em grupo para garantir uma caça, o descanso depois de saciado ou fugido, o anoitecer, a vigília, a brincadeira, o cansaço.

Se fosse o contrário, nós da espécie humana sendo filmados como um reality show ou tratados como animais de estimação ou domesticados? Mas será que isso já não acontece. Falamos de tecnologia e mal percebemos que ela vem intensificando as desigualdades, porque a tecnologia já nasce como status para poucos e também como estratégia de guerra. O radar do morcego tem disso. Uma ave da América do Norte que dorme de olho aberto e parece dormir acordada. Mas também tem ave que não dorme e fica mesmo em vigília.

Por que então gostamos tanto de enjaular os bichos animais sendo que nós humanos é que vivemos enjaulados sem saber?

A vida é mesmo um reality show humano animal. Nosso bicho humano é mesmo a criança. Porque nos faz pensar com o mover e sentimos as infâncias de nossas danças, que tem a ver com a infância de nossos corpos, antes mesmo de serem danças ou outra coisa, como caminhar ou pular, ou cantar e compor uma música.

Então, criancemos nossas danças feito um baião desengonçado.

Uma dança criança bicho que ronca e brinca. Pois quando eu era pequenino, miúdo, como diz em Portugal, “eu vi bicho roncando”, e quase me assustei. “Por trás do mangará”, corri feito louco. Que “na minha terra tem menino barrigudo”. Tem também “lobisomem cabeludo, tem gato maracajá”. De vez em quando, “tem redemoinho que dá volta na poeira”. E “dá volta no ganzá” para ser bicho humano.

Pensar com o mover para ser bicho criança, isso mesmo.

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