Muitas vezes sentimos saudades de pessoas e lugares. Ultimamente sinto saudades de danças e dos corpos que as dançaram, e que ainda dançam em mim. São memórias que a gente esquece para lembrar e lembra para esquecer. Esquece lembrando. Lembra esquecendo. Sinto nesse movimento uma selvageria humana que vem à tona.

Numa conversa online com uma amiga, quando falei de um projeto de dança, ela me disse que ele lembrava uma dança de uma amiga dela, dançada em 2007. Noutra conversa, dessas matinais, também com uma amiga, ao telefone, comentei sobre a dança em terras européias e lembrei de um espetáculo francês, de 1997, dançado na estreia por um bailarino português.

Na primeira conversa, a dança tem já seus 10 anos e vi ao vivo. Na segunda, o dobro, 20 anos, e que vi em vídeo. Memória tem dessas coisas. Faz-se de cronologias, mas se tornam móveis pelos afetos. É que essas danças que lembro dançam em mim certos estados de consciência passados.

Do que se esquece lembramos. Lembrar é esquecer. Do que lembramos esquecemos. Esquecer é lembrar. Há muito movimento de corpos e sinapses nesse pensar com as memórias.

Das minhas danças, lembro muito. As danças que dancei de outros lembro um pouco e quase esqueço, por vezes. Há, contudo, certas danças que habitam minhas danças, porque as testemunhei. Sei que estão lá, aqui. Vez por outra uma ou outra vem e tento acolhê-la.

Propositalmente não citei os nomes das danças e dos artistas que a pariram. O processo de feitura de uma dança tem suas complexidades estéticas. Pode ser feito sem nomes próprios. Uma dança nos chega como um produto acabado, mas se achegando para outra relação, outras redes de feituras. Dessas ainda sem nome, sem idioma.

A dança dançada e também vista dançando passa a ser dança em nós. Por isso que tenho algumas danças de cabeceira. Como grande exercício, acionar essa pulsação chamada memória viva ou movente. Uma vez li que uma pessoa sem memória é um corpo morto em vida. Logo, um dançante sem memória de dança seria um corpo dancing dead, moribundo? Certamente. E isso me preocupa.

Minha avó materna se chama Zulmira. Ela tem 101 anos vividos e caminhando para completar os 102. Centenária. Numa dessas conversas memoráveis, ela falou pra mim que se lembrava quando eu ia me aprontar com sua filha caçula, minha tia, Izabel, para os concursos de lambada em meados dos anos 90. Esses concursos aconteciam no Hotel Jean, que era pertinho da casa dela e longe da casa de meus pais.

Foi meu primeiro camarim. Minha primeira sala de ensaio. Não tenho fotos, just memories. Como uma famosa música para dançar lambada dançando, de um grupo baiano que ganhou o mundo e, agora-hoje, a internet nos ajuda a relembrar requebrando essas memórias by google.

Minha avó Zulmira, eis minha primeira mecena de dança. Adorava. Até porque eu era o neto que inaugurava os eletrodomésticos que um filho dela, amostrado pra ostentar, gostava de “presenteá-la”. Por quê? Porque de funcionais eram supérfluos. Vovó preferia afazeres domésticos do seu jeito, com o corpo, colocar a mão na massa.

Não é a toa que sempre me lembro da vovó quando estou aprontando ideias de dança e me aprontando pra dançar. Pois sem ela, minha memória de infância teria sido um pouco sem gosto, sem sustança. Dando-me uma lição num tempo outrora que no agora ganha outras sustanças e saudades. Pode ser nostalgia, mas é mesmo afeto vivo.

Que nesse “aqui onde indefinido”, são os outroras feitos, sim, de agoras e também de quandos, que nos fazem humanos em nossas selvagerias. Que “agora que é quase quando, quando ser leve ou pesado deixa de fazer sentido”.

E de repente, aquis acontecem nesses agoras-quandos-de-outroras, “aqui de onde o olho mira, agora que ouvido escuta, o tempo que a voz não fala, mas que o coração tributa”.

Nessas lembranças e esquecimentos que a memória, mesmo falha ou residual, ainda pulsa e insiste em nos lembrar e esquecer, que se “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”, a melhor dança do mundo também o é, aqui e agora.

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