Precisamos pensar, com mais atenção, sobre a “atualidade” de um trabalho artístico. Não ser feito hoje, mas como o hoje com o qual o observamos permite alguma transformação de olhar e percepção em nossos dia-a-dia. O solo La Bête (O Bicho), de Wagner Schwartz, colabora para refletirmos sobre essa questão e faz abrir nossa percepção para o momento político atual de negação do outro. O artista mineiro, radicado em São Paulo faz sua segunda e última apresentação hoje, dia 28 de março, pela edição 2016 do Festival de Teatro de Curitiba. É certo que nesse solo há algo de datado, sim, que tem a ver com a escolhas do próprio artista, quando lança no mundo uma primeira configuração daquilo que o processo criativo fez emergir. Contudo, esse datado se desestabiliza quando a leitura da obra é atravessada pelo que há de tempo presente em nós.
Isso instaura um jogo sensível que nos autoquestiona em La Bête. Podemos tudo com o outro? Esse outro, que não sou eu, não tem os mesmos direitos? Esse outro, diferente de mim, merece menos cuidados e até menos luto do que se fosse eu? Perceber o outro não é da ordem do desconhecido? Considerar esse outro, quer seja amigo ou inimigo, é dar-lhe um veredicto definitivo? De que esse outro, não sendo eu e nem parecido comigo, merece ser desdenhado, ridicularizado? Não seria esse outro uma oportunidade de um alento,? Que conforto esse outro pode me dar? Que outro jeito é esse para eu me conhecer a partir daquilo que me é exterior? Como se move com outro (comoção) e não contra o outro (predação)?
Essas perguntas não precisam, em tese, de respostas exatas, mas, sim, de outras perguntas precisas, necessárias, urgentes, humanas. Façamos um exercício rápido de alteridade, a partir de uma notícia recente: Corpo de nordestino assassinado não atrapalha dia de praia em Florianópolis. O nome do rapaz era Jadson da Silva Pereira, natural de Maceió, capital de Alagoas. Foi assassinado na própria praia, quando perseguido e, ali mesmo, esfaqueado várias vezes, diz a reportagem. Antes de morrer parece ter denunciado seu algoz. Mas o fato não impediu as pessoas de ficarem na praia, mesmo com as faixas preto-amarelo isolando o corpo. As pessoas presentes na praia continuam seus banhos de sol, à beira-mar, como se nada tivesse acontecido.
Continuemos o exercício. Se o corpo encontrado fosse o do seu irmão ou irmã, ou do seu namorado ou da sua esposa, ou mesmo, se fosse o seu próprio corpo, não ficaria indignado com a demora em ser retirado, como se nada tivesse acontecido? É possível continuar o desfrute do sol e mar tendo como paisagem um corpo outro sem vida à espera de ser retirado, como se este fosse um corpo sem nome, sem história, sem direito ao luto? É que nos parece que, com o outro, podemos tudo, até nos ausentar de qualquer corresponsabilidade. Mas sabemos o que esse poder-tudo significa, em termos éticos?
Por isso que, dentre outro feitos, La Bête, traduzido como “O Bicho” (mas bem poderia ser “A Besta”), é um exercício sofisticadíssimo de alteridade, dada a sua simplicidade dramatúrgica em referência aos “Objetos relacionais”, de Lygia Clark (1920-1988), que são esculturas geométricas que podem ser manipuladas e articuladas. Essa questão sobre os objetos e sua relação com o corpo já estão presentes no percurso artístico de Wagner Schwartz, como Transobjeto (2004/05), que ano passado reapresentou em comemoração pelos 10 anos; e também no solo Piranha (2009/10), onde articula os movimentos do corpo-metáfora e do objeto-texto. Essa coerência, que vem da continuidade, é que faz desse solo tão eloquente.
Tanto que Wagner, em La Bête, nos convoca para um encontro desse poder-tudo com o saber-que-podemos-tudo, um confronto, ora amigável, ora arrebatador, ora iminente, ora consequente, ora convidativo, ora excludente. E faz isso, de uma forma tão sútil que mais parece um levante, daqueles que começa sorrateiro, pelas tangentes e vai se atravessando de desejos e iminências desses corpos em seu entorno. Ele, performer, está no centro e o público, também performer, no seu entorno. Essa pré-disposição performática, porém, não o fragiliza em nenhum momento, pelo contrário, o potencializa, é ação de pensamentos. Wagner, esse corpo-bicho-la-bête , destitui-se de qualquer controle ou desejo ensimesmado e se coloca à disposição do outro. Melhor, ao deleite da ética do outro e da qual ele fez/faz parte. Tudo pode acontecer. Nada idem. Desde o início, quando ele manipula o objeto-réplica da artista Lygia Clark, esse saber-poder se esboça como uma conversa em silêncio, sua potência está lá.
É um paradoxo, pois depende, em parte, de que público é esse que se faz o entorno e que ética será essa a ser construída, circunstancialmente, enquanto uma ética individual que perturba uma possível ética coletiva. Vamos sentindo necessidades estéticas naquilo que cada um sente como uma vontade individual. Pode parecer que a dramaturgia é do coletivo, mas não dessa forma, tão diretiva. Há algo de coletivo que se constrói como coletivo, porque são pessoas ocupando o mesmo espaço ao mesmo tempo. Porém, estar no mesmo espaço não quer dizer estamos juntos ou juntas, aí é que a performance, em La Bête, ganha outro contorno de conhecimento, nos mostra esse saber-poder enquanto políticas de vida.
Sobre isso, digo ainda: não é o público que transforma La Bête em uma experiência estética, mas são as as individualidades (essas qualidades de ser indivíduo no mundo) que demarcam o que há de indissociável do movimento entre arte e vida enquanto performance do corpo em relação de dança e vida.
Joubert Arrais é crítico de dança, artista-pesquisador e professor universitário.
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