(Foto: Annelize Tozetto)

Assistir uma única vez ao solo The Hot One Hundred Choreographers (“The Hot 100”), do coreógrafo Cristian Duarte, pode parecer suficiente. Para alguns. Mais de uma vez, até duas, ou mesmo três e quatro, pode ser um exagero. No Festival de Teatro de Curitiba 2016, em sua 25a. edição, as apresentações previstas são apenas duas, ontem, dia 31 de março, e hoje, 01 de abril, às 21 horas, no teatro do Sesc Esquina, na capital paranaense.

No primeiro caso (uma vez), é uma circunstância feito torrente que encanta e instiga. Já o segundo, sinto mais como um estudo obsessivo que, se for acompanhado, torna-se um desafio e um deleite. Longe de ser um “decifra-me ou te devoro” (uma tendência a ser inibida), trata-se de um trabalho de dança que desestabiliza a noção engessada de que coreografia é apenas uma sequencia de passos guiados ou ao som de uma música.

De outro modo, Hot 100 evidencia um movimento arqueológico, com certo viés anárquico, e que chamamos de “anarqueologia coreográfica”. Para atiçar a brasa de que não decodificar com exatidão pode ser uma experiência incrível das atemporalidades de uma dança e sua memória em nossos corpos. Foi criado originalmente para o 15º Cultura Inglesa Festival 2011 e recebeu o Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor criação em dança em 2011. Desde lá, chega ao quinto ano de apresentações pelo Brasil e fora do País.

Conversando com o solo, temos que o termo arqueologia vem da geologia e anarquia, da política. A fusão dos dois termos é um atrevimento conceitual que nos faz dar outro corpo para aquilo que pensamos, raciocinamos, especulamos. Assim surge o conceito “anarqueologia”, advindo de estudos do pensador francês Michel Foucault (e no caso das mídias, do filósofo e historiador Siegfried Zielinski), que é, na verdade, um jeito de lidar com as coisas do mundo, na ação tanto de encontrar (o conhecido) como descobrir (o desconhecido), quando lidamos com o verbo escavar como uma metodologia não linear.

A busca passa a ser por aquilo que esperamos e nos movemos para encontrar. Ao mesmo tempo (pois é uma questão de tempo e paciência), relaciona-se com aquilo que encontramos sem estar previsto, ou não tanto, que não era esperado, e por isso, nos causa surpresa.

Por exemplo, ver o Bolero de Ravel (1928) no corpo sendo dançado e, lá depois, enquanto música só no áudio. Dois momentos desconcertantes e desconsertantes. Isso mesmo, há uma ambiguidade de parecenças, pois causa “desconSerto (desarranjo) e “desconCerto” (desordenamento). De acordo com o Dicionário Houaiss, o adjetivo desconSertado indica algo «posto fora de funcionamento; desarranjado, desordenado»; já o termo desconCertado qualifica algo «sem harmonia, sem ordem». São diferenças sutis mas que nos apresentam como uma hipótese de relação com o solo se há um movimento de desestabilizar estruturas e percepções já muito estabilizadas.

Para o coreógrafo, a partir de texto do seu site sobre o trabalho, que diz: “minha tentativa é a de desvelar como o corpo em movimento negocia com seu próprio repertório e memória”. Talvez essa distinção de “desconSerto” e “desconCerto” esteja mesmo no verbo “desvelar”, ou seja, que direção de pensamento cada palavra pode nos levar enquanto experiência do que ouvimos e do vemos como dança e como música.

Há nisso uma oportunidade de emancipação do público, se este estive aberto para os ruídos, vestígios e pistas de uma conversa ou diálogo proposto pelo artista como espetáculo, e não mera fruição contemplativa. Hot 100 retoma a relação dança e música a partir desse sentimento que deseja emancipar, e não regular, quem está diante dos movimentos que aciona enquanto as músicas e os áudios, postos desconexos, vão criando outras conexões, outras emergências.

Não diferente da música e coreografia clássicas, que associamos ao Bolero de Ravel, eis que surge Flashdance (filme, 1983), e também, noutro momento, Single Ladies (música, videoclipe, 2008). São duas informações que repercutiram e ainda repercutem na memória de muitos de nós. Basta uma rápida pesquisa na internet e já encontramos remakers e paródias, e também muitos tutoriais (vídeos que ensinam a dançar a coreografia).

No solo, elas aparecem não necessariamente no formato uma dança que acontece ao som de uma música, mas essa desconexão, ou melhor, desassociação que nos coloca nesse movimento anarqueológico proposto por Cristian Duarte. As memórias de dança e competências coreográficas vão se atualizando na ação do corpo e a coexistência entre dança e música. A cultura pop e a dança que emerge ou é simulada nessa cultura pop ganha certa notoriedade quando fica borrada a fronteiras do que é clássico/tradicional e o que é pop(ular)/contemporâneo.

As 100 coreografias, disponíveis no site de Cristian Duarte, são deleites atrevidos de rigores e ousadias. Assim: ouvir as coreografias no ver as músicas. Por isso precisamos ter o cuidado de não subestimar, nem superestimar, a simplicidade dramatúrgica do solo, ou seja, o modo como ele se apresenta: ruidoso, rascunhado, precário, não-linear, contundente.

Joubert Arrais é crítico de dança, artísta-pesquisador e professor universitário.

Cenas do solo em apresentação durante o Festival de Teatro de Curitiba 2016. (Fotos: Annelize Tozetto)

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