No nordeste (ainda) é assim?

Pensar a dança no Nordeste brasileiro não é tarefa fácil. Exige ousadia diante de um contexto tão diverso e que tanto (nos) instiga. Artisticamente, requer rigor conceitual se, de fato, houver um desejo que (nos) questione. Pena que um olhar cearense para esta realidade, presente no espetáculo No Nordeste é assim, da Cia. de Dança Janne Ruth, em cartaz no Quinta com Dança deste mês, pouco contribui para a construção de outro senso comum sobre nossa região. Reforça a idéia do retirante cordial que “vence” na cidade grande, por aqui e País afora. O que evidencia também o descuido curatorial do Centro Dragão do Mar com o projeto de difusão em dança mais representativo da recente história da dança no Ceará.

Tem a ver com uma afirmação ainda pouco compreendida: um objeto estético não é, necessariamente, algo de valor artístico. Definir o que é arte e, especificamente, o que é dança necessita de parâmetros que dialoguem com o mundo que é (im)posto para nós, diariamente. A arte tem que gerar algum deslocamento de ideias nos discursos rotineiros e, assim, abrir outros horizontes. E a dança, buscar ações menos engessadas para ser possível desestabilizar, nem que seja o mínimo, a verdade universal do passinho-aqui-passinho-acolá .

Por isso, dizer que, no palco, No Nordeste é assim enfatiza um tratamento estético mais comprometido com a diversão. Tal impressão não invalida a montagem. O apuro técnico parece ser quase inegável. Roupas, figurino, iluminação, videocenografia, trilha sonora, enfim, todo um conjunto simbólico que oscila entre a tonalidade terra e o colorido da chita, o corpo sofrido e sorriso estridente. Esforço para o prazer contemplativo do público, condizente com o próprio slogan de divulgação, que diz: “Venha assistir um espetáculo fantástico que já passou por uma turnê norte-nordeste, sul-sudeste e interior do estado do Ceará e foi aplaudido por mais de 15 mil pessoas”.

O que está em questão, no entanto, é de que Nordeste fala o trabalho desta companhia cearense de dança? Ou melhor, de que região este espetáculo omite-se em falar? Como desestabilizar algo já tão categorizado como a dança nordestina dentro de outra tão forte quanto, que é a dança brasileira? Como se deslocar para outras vias políticas de ação quando há uma falsa nordestinidade forjada pelos discursos turísticos marqueteiros que ainda seduzem muitos criadores de dança? Que exercício autocrítico (nos) é necessário (e suficiente) para minar um lugar comum folclorístico sobre nossa região que tanto impera?

Tudo isso também coloca em xeque os objetivos de projeto Quinta com Dança, em atuação desde 2000. Trata-se, em gênese e percurso, de um espaço destinado a trabalhos autorais e experimentais de dança contemporânea, e, não, às mostras escolares empenhadas no bom desempenho dos alunos para averiguação e apreciação de pais e familiares. Logo, projeto e espetáculo estão descontextualizados em relação a seus propósitos. Isso confunde o público cativo – que espera ver obras problematizadoras de questões contemporâneas – e também os artistas – que acreditam estar numa situação artística adequada, uma vez que foram selecionados para estar ali.

Eis aí um esforço emergencial. Contrariando os adeptos da incansável identidade meramente regionalista, como também os que acreditam que a dança não merece alguma atenção curatorial, há, sim, uma contemporaneidade pulsante e resistente nos contextos e obras artísticos – cúmplices e, ao mesmo tempo, distintos – que engendram nossa região. Só não vê quem não pode? Difícil. Só não vê quem não quer, mesmo!

 

Crítica publicada originalmente no Caderno Vida & Arte, do Jornal O POVO (CE), em 20 de agosto de 2009.

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1 Comentário

  1. Zigiefrid ou Rubéns

    concordo em gênero, número e grau. E confesso que me sinti deslocado enquanto artista e publico do projeto…

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