Falar sobre uma obra certamente não constitui tarefa fácil e, até então, só fizera tal ação em meus diários pessoais, registros que costumo fazer sempre que sinto necessidade de colocar em palavras algumas sensações suscitadas enquanto espectadora. Esta tarefa de exercício de crítica mais elaborada, porém, configura-se num desafio interessante ao qual me lanço. Voltemos, então, o tempo em alguns dias…
09 de junho de 2011, quinta-feira, 23h
Acabo de assistir o “Quinta com Dança” do mês de junho, no Teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Partilho impressões sobre Ma vie, da artista Aspásia Mariana, ato II do espetáculo; partilhar sobre meu ato de fruição, de contemplação da realidade sensível da obra.
A obra nasce diante da plateia e necessita dela para existir. Pareceu-me importante o olhar do espectador para que as imagens geradas ganhassem significações. Ela dança, despretensiosamente e deixa em aberto conexões ainda a serem estabelecidas. São imagens que fazem dialogar corpo e tecnologia, através da iluminação cênica, teatro e dança.
Voltemos um pouco mais, quando Ma vie inicia.
São 20 horas e 27 minutos. A artista entra de figurino em sua maior parte na cor branca, com meias rosa, cílios coloridos, batom e esmalte fluorescente, colar preto. Pede desculpas por ter mentido quando disse que é apenas um solo, que dançaria só. Mas diz também que não é um duo. Aspásia avisa ainda: existia uma mulher, a Loïe Fuller, que gostava de luzes, dança e de vestidos longos, mas também não é sobre ela que a dança trata. Agora eu compreendo, é uma dança dançada por todos nós ali presentes.
Aspásia volta e nos avisa que tudo o que ela acabou de dizer pode ter sido uma mentira. Outra inquietação me irrompe: qual o grau de ficção e de realidade das danças cênicas? Hoje se discute tanto sobre a relação da arte contemporânea com a vida, que tudo parece misturado, verdade, vida, ficção, tudo co-relacionado. A dramaturgia da vida dançada e a abstração das possíveis mentiras. A obra foi inventada a partir do que é real, das vivências da intérprete ou a própria realidade dela é criada?
Recordo-me nesse instante do poeta Manoel de Barros, que adverte, assim como Aspásia: “Tudo o que não invento é falso”. O espectador atento já não segue do mesmo modo que chegou. Geralmente não somos acostumados com avisos desse tipo, que desconcertam certezas prévias. Ela gira a caixinha de música, uma bailarina dança na caixinha e a música toma o espaço, move-se com movimentos um pouco engraçados, com uma saia que parece ser de uma bailarina, mas seus movimentos não são como os de uma bailarina presa ao rigor técnico, ela se assemelha a uma bailarina “de férias” daquela técnica, livre, solta, que se diverte.
Indago-me se Aspásia e Loïe seriam consideradas bailarinas pela plateia ali presente. Divago por um instante, mas logo olho para o palco todo e percebo luzes (vários focos), lustres com luzes que pendem do teto. Uma voz no som avisa: “1890, uma luz verde foi pedida”. Nesse e em outros tantos momentos o que é narrado no som parece ratificar o que é dançado. Não tive a sensação de legenda, como uma explicação, ao contrário, as sentenças parecem apenas afirmar de outro modo o que o corpo tenta nos dizer em conversas com as luzes.
Enquanto no som se fala em ondulações, ela dança e gira sob um foco de luz, fica tonta, desequilibra várias vezes. Imagens interessantes se formam diante dos olhos dos espectadores. Figuras disformes, o corpo parece tomar outros contornos. Ela pega todos os lenços nas mãos e ocupa o palco todo, de foco em foco até as luzes que saem do teto.
Nesse instante os cílios, unhas, a boca, a roupa, os panos brilham no escuro. Um estalo se instaura em minha percepção. Ela, bailarina Aspásia, não é mais o foco, o corpo mulher some para as luzes dançarem. Acredito ser essa uma das perguntas centrais do espetáculo, questionar o que é possível emergir do encontro do corpo com as luzes, com a tecnologia. No caso específico, do corpo Loïe reverberando no corpo Aspásia, nas luzes de 1890 e de 2011, e o que acontece nesse entremeio.
Aspásia parece se divertir, enquanto as cores serpenteiam no ar. Vejo muitas imagens se formando. Borboletas, vagalumes, espirais, círculos. São formas abertas infinitas que dançam à minha frente, as quais cada espectador fecha. Então, é anunciado: “cada intérprete terá a sua dança. Nada será idêntico”, o que corrobora minha ideia de que ela quer tratar das luzes e do corpo como dança.
A bailarina da caixinha, ponto de partida de tudo, parece perder terreno para a fertilidade das luzes e das imagens provocadas no encontro com o corpo movente ou parado. Não é tarefa fácil provocar esse tipo de pergunta para uma plateia que ainda hoje possui formatos fechados do que considera dança. Inclusive, em alguns momentos, para fugir dos estereótipos de dança, a intérprete-criadora, em minha opinião, recai na construção de um corpo teatralizado, remetendo-me a uma leve insanidade, típica dos personagens encenados pelo ator Johnny Depp. De novo, ficção de realidade.
Com isso, questiono-me se é necessário esse corpo teatralizado para fugir do que é considerado dança e estar na ambiência do encontro das luzes com o corpo. Não entendo essa estratégia como geradora de potência, ou melhor, não entendo como a melhor estratégia. A própria composição da cena, das cores, das luzes, dos véus e do corpo, toda essa nova dança, já me leva a novos lugares, aponta-me possibilidades de percepção de dança fora do corpo normalizado como dançante. Aspásia parece poder muito mais do que apresenta, sendo o Ma Vie uma espécie de trailer do diálogo do corpo com as luzes.
Olho no relógio, são 20 horas e 37 minutos. Foram apenas dez minutos de cena. Quando o espectador é tomado por esse turbilhão de sensações, tudo acaba. As pessoas ficam ainda sentadas, esperando mais, sem ter certeza de que terminou mesmo.
Eu fui uma delas.
Texto produzido no módulo de crítica de dança, ministrado por Joubert Arrais, para a 3ª. turma do Curso Técnico em Dança ((IACC/SECULT/SENAC).
Eveline Nogueira é integrante do Grupo La Calle, que utiliza o diálogo da dança, teatro, música e técnica circense. É aluna do Curso Técnico em Dança – IACC/SECULT/SENAC, mestre em Educação Brasileira, graduada em Psicologia, com formação em arte-terapia.
angeu
Fiquei pensando o que é esse corpo teatralizado[???], pois se tudo que não invento é ficção… tudo que não é cena é teatralizado??? isso dá pano para tessituras…
joubert
Considero o corpo teatralizado o que tem o vício da representação, ou mesmo reafirma a quarta parede, mas isso não é suficiente, sinto, então, como podemos construir outro senso comum sobre a ideia de corpo teatralizado, que não seja negativa? Teatralizar o corpo seria criar uma prontidão outra do representável? Lembrei de Ranciere que, no livro Espectador Emancipado, diz ser necessário não haver mais fronteira entre artista e público, ambos cúmplices…talvez seja um indício. Ou não…ruminemos.