Foto: Luiz Alves -Dragão do Mar 

Dia 15 de março de 2014, a bailarina cearense Wilemara Barros dançou o que chamou de “Aula Magistral”, no foyer do Theatro José de Alencar, em Fortaleza. Alguns meses depois, esta aula torna-se o espetáculo “Mulata”, apresentado, neste sábado, dia 16 de setembro de 2017, pela primeira vez na Bahia, pelo VI Festival de Dança de Itacaré. Da Cia Dita, este solo inaugura a presença de uma companhia do Ceará no evento, pelo qual faz uma segunda apresentação, dia 22, em Ilhéus. Trata-se de uma dança brasileira contemporânea, permeada de histórias de dança-vida. Configura, na cena e no corpo, uma dramaturgia testemunhal, artística e socialmente coreografada por encontros e conflitos, consensos e dissensos, desabafos e serenidades.

Dançar fora do Ceará é deixar-se atravessar por outro nordeste e, também, adentrar-se. Com “Mulata”, sob o olhar atento do coreógrafo Fauller, a Cia Dita desbrava o litoral baiano, neste sul nordestino localizado entre o mar e as serras cobertas pela Mata Atlântica. Depois parte para a terra literata de Jorge Amado e sua personagem Gabriela, onde o festival, nesta sexta edição, acontece fora da cidade-sede, com apoio financeiro da Secretaria de Cultura do Governo do Estado da Bahia. Dos selecionados, é único trabalho que se apresenta em dois momentos memoráveis, certamente. Um no Centro Cultural Porto de Trás, em Itacaré; e o outro, no Teatro Municipal de Ilhéus.

Neste espetáculo, sentimos a narrativa autobiográfica ganhando corpo, encorpar-se. É uma dança para chamar de nossa, destas que nos fazem sentir o movimento que se organiza e dança a se entranhar em nós, presencialmente. Dela com ela mesma. Para nós, conosco. E nesse entre, não há um “fora” apartado de um “dentro”, pois é corpo e ambiente incessantemente a se transformarem, mutuamente, e engenhar outros sensíveis. É a dança da Wilemara – ou da “Wila”, como carinhosamente é conhecida – que (nos) autobiografa, porque lhe pertence e nos faz pertencê-la. Ela fala e dança, dança e fala. No falar, verbaliza. No fazer, declara-se no que faz. Performativa, Wila faz algo o dizendo. Não é sobre balé, mesmo essa técnica sendo tão presente como sentimento ambíguo e ambivalente. É, sim, sobre o manter-se em pé, um estudo humanizante para o corpo na vertical, um virtuosismo com obra, um mostrar fazendo com sustança.

Depois da estreia em Fortaleza, há três anos, “Mulata” foi dançado pela segunda vez, em abril deste ano, em Juazeiro do Norte, na VIII Semana Dança Cariri, no teatro do Centro Cultural do Banco do Nordeste, promovida pela Associação Dança Cariri (ADC). Foi quando acompanhei o ensaio, apenas, filmando momentos dessa intimidade do processo, atento a ele como outra obra, outra presença cênica e artística. Já em julho último, enfim, assisti ao espetáculo no projeto Quinta com Dança, pela Temporada Arte Cearense do Dragão do Mar, na capital cearense. Nele me movi com Wila na sua fala-testemunho, cara a cara, corpo a corpo, no presente do presente. Outros artistas da dança estavam lá e o mover com a dança já não era mais sozinho, mas um reencontro como acontecimento que faz emergir outras vozes e falas. Pois não é uma mera descrição, nem uma tentativa de dar conta.

Reconhecemos as cronologias de datas e efemérides, com inícios, interrupções, retomadas. São memórias de cada dia em muitos tempos de um corpo que não se cansará em desbravar outros tantos. No livro que leva seu nome, lançado em 2014, em comemoração ao seu aniversário de 50 anos de vida e 40 de dança, Wila já nos disse, fazendo a soma: “Quero dançar até os noventa anos de idade”. Nesta publicação histórica, ela confessa, filosofando: “eu sou o próprio devir, eu estou em devir, um movimento em constante transformação”. Não por acaso, foi com o espetáculo “Devir”, da Cia Dita, que o coreógrafo Fauller a convidou para dançar, em 2002, na época do Colégio de Dança do Ceará, criando juntos a companhia e sendo este espetáculo um marco na sua trajetória, quando muitos diziam que seria o fim da sua carreira de bailarina. Por que seria? Não foi, felizmente. De lá pra cá, firmaram uma parceria que dura até hoje. Na dança e na vida.

É o que presenciamos ao vê-la dançar. Uma metamorfose de estabilidades e instabilidades cambiantes. Neste solo de dança, permeiam-se muitas solitudes coletivas, em contrapontos de estados de si não ensimesmados, pois solicita o outro, compartilha história(s). Tanto que, nela e com ela, reconhecemos que uma autobiografia não é um fato absolutamente pessoal. O senso comum insiste em dizer que sim, num mundo verborrágico e tagarela de tanto “eu mesmo”. Ainda bem que há controvérsias. Vê-la dançar e tecer falas performativas do que a fez e faz seguir dançando, nos fortalece na partilha, em trocas constantes. Wila dança e fala, e nos faz dançar, porque nos fala o que muitos não tem coragem ou empatia. E mesmo quando aparentemente silencia, grita. Vamos delineando contornos incertos de vida e dança. Gera em nós diferenças na semelhança.

Da ordem do indizível, o acontecimento diz-se, porque esse testemunho dançado de Wila nos toca naquilo que mal sabíamos de sua latência no corpo. Como sobreviver dançando? Assertivamente, é sobre viver de dança em tempos tão nefastos para a arte. Força e fragilidade imbricam-se nesse assumir-se desnudo na cena. Wila é uma artista mulher, bailarina negra índia, mestiça cearense nordestina brasileira, interseccionalmente. Raça, gênero e classe se entranham de rigor e ousadia em “Mulata”, nome que demarca um percurso com preconceitos no ser uma bailarina clássica não-branca. O olhar maduro do coreógrafo Fauller para sua história de incompletudes descoloniza essas marcas de realezas e escravaturas, inclusive na dança, que constitui nossa dita história de brasileiras e brasileiros.

Porque as histórias são muitas, sabemos. Mas cada vez que as contamos, ou tentamos contar, acionamos feedbacks e flashbacks. São aparentes retornos ao passado em certas nostalgias que nos presentificam. Atualizam e nos fazem reviver somente se tratarmos o presente como mais do que instantes do agora, um presente ampliado. Nem tudo está dito, nem precisa. Há vestígios, rastros, pistas, marcas, inscrições nesses corpos cearenses-brasileiros que dançam. Nesse sentir, “Mulata” é nosso dispositivo historiográfico, tensiona o comum a partir daquilo que lhe é tão pessoal e, nesse movimento, aguça uma escuta humana para, no caso da dança, o que se intercruza entre as relações de poder-dançar e de saber-dançar. Podemos, saberemos?

Mais do que um espetáculo, “Mulata” é uma obra artística que se expande, (bio)politicamente, sem tomar partido. É comunicação como produção de experiência e presença. É dança como ação que acontece no corpo e não fora dele. É performance porque radicaliza limites e cumplicidades. Por fim, é um corpo que dança como uma comunidade que vem, um presente em suspensão, naquilo que parece ter sido dito, vivido, dançado, mas não foi. Nasce como uma aula magistral, uma demonstração de excelência. Permanece sábia como tal, digna de uma mestra da Dança, Wila.

Joubert Arrais é dançarino, crítico de dança e professor. Leciona no bacharelado em Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA), em Juazeiro do Norte, onde coordena o projeto de extensão “Comunicação, Dança e Performance”. Editor do enquantodancas.net .

Informações sobre o VI Festival de Dança de Itacaré: http://festivaldedancaitacare.com.br.

*Texto originalmente publicado na versão impressa e também online do jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, dia 16 de setembro de 2017.

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