Tratar uma criação artística de dança como estudo é uma decisão tanto política quanto estética. Política pois reconhece a dança como campo de produção de conhecimento, uma arte onde se pode problematizar as questões do nosso mundo, que resulta de investigação, de ser necessário deixar isso evidente. Estética porque se propõe a assumir, artisticamente, o estudo como um jeito da dança se organizar na cena e no corpo que dança, de aceitar a condição processual da obra no ato público.

Constatei isso, com mais proximidade, na temporada de “Estudo sobre Cinderela”, no mês de marco último, no Alpendre. Quatro apresentações, sempre aos sábados, das quais, participei de três. Digo participei, porque me coloquei não como público apreciador, mas como alguém estudando junto com eles. Nestas apresentações, ficou evidente o desejo de testar outros modos de organização para uma mesma idéia-pesquisa, que é refletir sobre o mito da Cinderela. Tal intenção é bastante pertinente, no sentido de buscar investigar tal mito e seus desdobramentos possíveis através de outras práticas artísticas, vindas de outras experiências como o teatro e o popular, como também do uso da palavra falada e impostada, e, principalmente, do caráter colaborativo que buscou inserir.

Para tanto, o bailarino e performer Paulo José, que assina a direção geral, convidou os colegas-artistas-bailarinos-performers Daniel Pizamiglio, Luiz Otávio, Fabiano Veríssimo, Alexssandro Pereira e João Paulo Barros para “compartilhar” do que ele, Paulo José, já vinha investigando. Isso porque o ponto de partida foi trabalho solo de intervenção urbana, de mesmo nome, realizado durante o Encontro Terceira Margem – Bienal de Par em Par, em outubro de 2008, nos terminais de ônibus de Fortaleza. Um abrir o processo que, mesmo interessante, teve seus impasses quando a co-criação ficou mais para re-criacão, por conta das lacunas colaborativas no que diz respeito às particularidades dos outros corpos envolvidos nesses estudos sobre um estudo.

Objetivamente, percebi uma Cinderela angustiada, sem esperanças ante tantos calçados. Botas, sandálias, saltos, alguns quebrados, outros novos, enfim, muitos que, como elementos não somente cênicos, mas artísticos, estavam relacionados com a possibilidade de um deles servir e “salvar” a Cinderela da solidão. Por se pretender ser “um estudo sobre” e não “um estudo para”, há distinções e tensões nessas duas possibilidades, o que pode vir a ser muito rico para o trabalho, de qual dos dois está mais próximo.

Arrisco aqui uma diferenciação. O primeiro (“para”) encerra uma idéia destinada a um fim específico, uma percepção individual, um anseio particular, cuja carga subjetiva é maior, de um julgamento, de uma opinião. No segundo (“sobre”), o comprometimento explicativo com o tema central é maior, de um mergulho profundo sobre o assunto, cujo intuito é algo para ser demonstrado no ato da apresentação pública, algo bem mais vinculado ao imaginário coletivo a respeito do tema escolhido.

Logo, o fato de o trabalho ter como uma de suas referências um texto de Ricardo Guilherme (mais forte até que o próprio mito da Cinderela) colabora para que este estudo seja coerente com o que anuncia, de “um estudo para”. Tal proximidade com o texto dramatúrgico de teatro deu ainda um maior teor dramático para as apresentações, em especial, as que Paulo José estava em cena (a primeira e última).

Os riscos assumidos nesse pretendido estudo denotaram não só prós, mas também contras. Ou seja, em alguns momentos, o estudo se instaurou, criou certa materialidade cênica, certa estabilidade de existência. Noutros, perdeu-se na necessidade quase obsessiva de ter de dançar algum passinho como justificativa de que se tratava se uma obra de dança. Refiro-me ao fato de que um estudo requer uma certa atenção à metodologia (modos de fazer) e, principalmente, um cuidado sobre como aproveitar o que cada apresentação alimenta o processo. Não numa lógica linear, um após o outro, mas em rede, de forma sistêmica.

O uso do vídeo demonstra o interesse de Paulo José por tal estética. O vídeo como recurso cenográfico ou como parte da lógica artística da apresentação, e do próprio corpo que dança? Essa tensão ficou nítida, ora como mero elemento cênico, ora como o desnudar o processo com o uso do vídeo (vídeo dança ou dança videografada?).

Eis algumas questões e algumas hipóteses sobre esses estudos sobre um estudo. Uma decisão inteligente que requer mesmo ousadia, mas também rigor, quando se deseja desestabilizar o hábito imperante da fatídica espetacularização de todo e qualquer processo de criação em dança para esta ser chamada de contemporânea.

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