(Foto: Cacheado Braga)

Há um lugar comum que precisamos escapar. De que o corpo se politiza (apenas) quando se partidariza ou se institucionaliza. Não é garantido assim. Começa bem antes, no trânsito corpo-ambiente, em fluxos que não se estancam, nem cessam. Neles e com eles habitam resiliências e somente em situações de adversidade é que podemos percebê-las, dizê-las. A coreógrafa Andréa Bardawil e a Cia. Andanças demarcam um forte diálogo sobre esse fluxo resiliente no seu mais recente espetáculo, “Estudo para uma devoração”, que estreou no mês de agosto de 2016, a partir de uma pesquisa iniciada há três anos. Na temporada de cinco apresentações pelo Teatro Dragão do Mar, dançam a última no domingo, 20 de novembro de 2016.

Uma indagação que devora: o que o corpo artista pode mover politicamente? Sentimos isso logo quando subimos no palco. O público está sentado ao redor dos intérpretes-criadores enquanto fronteira da cena, fazendo parte dela. Uma concessão emancipa e nos instiga o olhar para o que ainda está por vir, pondo o trabalho aberto para o de(s)bruçar do encontro. Sentimos também o movimento com as periferias e os espaços alternativos que vem dinamizando esse espetáculo-estudo, nas presenças indiciais dos gestos como pistas que vamos explorando juntos, ora sozinhos, ora com o outro ao meu lado ou à frente. Se a intenção da pesquisa é com sujeitos sociais, conceder-se o direito de estar no palco faz-nos, potencialmente, ativistas do que os move fora dele.

Logo, o movimento que politiza o corpo é outro. Quando o corpo transita por ambientes diversos – os habituais da política, da cultura e da filosofia, inclusive, das nossas subjetividades – aí, sim, é que ele desestabiliza um fora-entorno e um dentro-sí-mesmo, e se politiza, faz política. E o faz no fluxo desses trânsitos, também geográficos, nesses nossos Brasis errantes e itinerantes. Sendo o corpo artista, este se engenha politicamente ao se colocar em convívio, na fricção do encontro com o outro, o diferente. Porque o corpo deixa de ser pensado como mero veículo de informação ou suporte de uma identidade fixa em si mesma. Porque a política, dilatada nesse outro entendimento de corpo, passa a ser compreendida de modo não institucionalizado, despartidarizado.

Na dança, sendo arte que questiona, é no dançar que o corpo singulariza tempo e espaço para uma desconstrução de hábitos e padrões. O que opera numa lógica habitual, o que padroniza o movimento, tende a se desarmar, perder certa solidez. Não é a toa que o percurso da pesquisa para este espetáculo da Cia. Andanças foi iniciado em 2013, com tantas aberturas e atravessamentos, coordenados pela sua coreógrafa. Dentre eles, o apoio público que veio só em 2014, com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, e com outro via edital municipal de Intercâmbios e Residências Artísticas, no mesmo ano. Já a estreia aconteceu no Bom Jardim, este ano, com apresentações também no Pirambu, e ainda, na comunidade Quilombola do Cumbe, em Aracati. No Poço da Draga, dançaram na programação da Bienal de Par em Par.

A busca por uma coerência arte-vida é evidente. Na cena, as individualidades e os ativismos dos intérpretes-criadores Sâmia Bittencourt, Aspásia Mariana e Wellington Gadelha nos coreografam quando acionam gestos e movimentos engajados naquilo que os mobiliza na sociedade. O entendimento de coreógrafa também se dilata, de que toda coreografia – inclusive a de dança – é social. Justamente para fazer desse estudo para uma devoração de visões de mundo. Somos confrontados, postos à contrapelo no que elas e ele se expõem. O dentrofora e o foradentro passam a ser (e são) o campo de forças que a si devoram-se enquanto nos devora. É fato. Nadamos em mar revoltos e que hoje estamos em momentos de refluxos.

Dai surge a urgência de se narrar a história “escovando-a a contrapelo”, como já disse Walter Benjamin. Porque a história dos vencedores já está dita. Dançar à contrapelo, dançar em mar revolto, dançar em refluxos é um dançar-piracema-pororoca, um dançar-vagabundos-cavalos, um dançar-cadeirinha-identidades, um dançar-confete-da-índia, um dançar-matadouro-preto-de-gente, um dançar-corpornô-óbvio. Esses dançares que não são para serem decifrados, mas para serem (re)devorados. São muitos e o que aqui foram citados, nessas permissões da palavra, que precisam ser “revisitados”, trazidos à tona de uma presença difusa da chamada dança contemporânea brasileira. Um dançar-devoração-tempo-da-paixão-do-que-se-pode-dizer, do que se pode, ainda que…

Pois, do que ainda se pode dizer, devoramos. Nessas outras danças que podemos lembrar, este espetáculo também as atravessa. Numa dança, outras habitam, são memórias, que recontextualizam. Há muitas falas-danças individuais num corpo coletivo comunitário, e não massificado. Danças-coreografias de lá ou de cá, mas que nós, cada um de nós, juntos, precisamos acionar uma memória viva. A partir dela, sentir o mover da cultura com o mover da arte, não como resgate, pois isso é lidar com moribundos. Estou fora de uma dança walking dead, uma dança-zumbi. Isso não! Como diz historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, reinventarmo-nos de um modo que desestabilize as estruturas (inclusive, regionalizantes) de poder que cerceiam liberdades, constrangem discursos.

Eis uma dança-estudo-Andanças movida por um movimento-devoração-Andréa, eis a intensidade de uma dramaturgia de passagem. Ora nos capta, ora nos larga. O comum passa a ter outra necessidade. Uma fome, um desejo. Devorar algo é comer avidamente. É se deixar comungar à contragosto, instaurar uma comoção inquieta de mover-com que nos faça constatar que o reconhecimento de uma vida como viva está politicamente saturado. O mito do decifra-me-ou-te-devoro é desromantizado brutalmente. Desenquandrar a vida desses enquadramentos que exterminam, que são predatórios, que dizem que certas vidas valem mais do que muitas outras que valem menos, que estas não merecem luto, como nos lembra a filósofa Judith Butler. Para refletir porque as vidas, essas viventes, foram e estão sendo intensamente precarizadas em falsas comoções.

Nesse “Estudo para uma devoração”, o que nos desafia é a alteridade como possibilidade coreográfica, social e política. A força crítica que nos impele no artístico é conjuntural como micropolítica de afetos, que se enlaça no estrutural das macropolíticas econômicas. Em outras palavras, é o incomunicável da vida precária onde o gesto politiza o corpo no desejo de comunicar mais do que garantir algo a ser comunicado como conteúdo controlado. Daí podemos questionar onde o gesto é socialmente tratado como ausente, constrangido numa presença invisível e inibido como conhecimento emergente. E assim, fazer da devoração uma afirmação da vida, eis a dança a ser dançada no palco e com o mundo, urgentemente.

Joubert Arrais é professor universitário, crítico de dança e dançarino-pesquisador

* A versão imprensa desse texto foi publicada originalmente no Caderno 3, do Jornal Diário do Nordeste, em 19 de novembro de 2016. Ver também versão online aqui.

Foto: Cacheado Braga/Itapipoca-CE

 

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