O tempo, quando visto como um aliado, é a dimensão existencial e fundamental da criatividade da natureza. Ao defender isso, o cientista Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química, lança uma visão otimista: “o tempo que não fala mais de solidão, mas sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve”. O mais recente espetáculo da Companhia da Arte Andanças, Os Tempos, em nova temporada aos sábados e domingos de junho, no Sesc Senac Iracema, é também uma mensagem positiva sobre os dilemas do ser-estar no mundo de hoje.
Criada em 1991, a companhia é referência estética na recente história da dança contemporânea no Ceará. Não sabiam ao certo de que ponto haviam partido nem a que final chegariam. Agora sabem, sabemos. São dezoito anos de atuação, muitos nomes atuantes e cinco trabalhos representativos para a dança contemporânea local (de um total de quatorze trabalhos apresentados), que denunciam algo importante para a idéia de pesquisa coreográfica em dança, que é o princípio da continuidade. O universo feminino é problematizado a partir da vida literária-existencial da escritora Clarice Lispector, desaguando na inquietante Dança de Clarice (2000). Em Vagarezas e Súbitos Chegares (2001), o mesmo tema vai ao encontro das obras da escritora mineira Adélia Prado e da artista plástica gaúcha Elida Tessler.
Já nas outras três coreografias, o tempo tem sido, e ainda é, motor criativo para a coreógrafa Andréa Bardawil. Primeiro veio O Tempo da Delicadeza, em 2002, realizado com apoio da extinta Bolsa Vitae de Artes e foi criado numa relação íntima com a estética do audiovisual e, especificamente, do vídeodanca. Em 2003, estreou O Tempo da Paixão ou O Desejo é um Lago Azul, que se inspira livremente na obra do artista plástico Leonilson, apropriando-se de elementos característicos da sua história, como o bordar no tecido, para desvincular, pela dança, e também pela trilha sonora, do estigma do “cearense que morreu de AIDS”.
Tudo isso faz de Os Tempos, que estreou em agosto do ano passado, um trabalho emblemático, pois nos situa no percurso estético da criação artística da companhia. Estabilidade que tem permitido também outras direções dramatúrgicas, como o “performar”, junto com as já vivenciadas, como o “estar-presente” na cena assim como é na vida. Almofadas brancas sinalizam para um convite ao aconchego. Márcio Medeiros, Possidônio Montenegro e Sâmia Bittencourt como intérpretes-criadores. Trechos de músicas que soam como pequenas epifanias para aguçar nossa percepção. Como uma da Banda Legião Urbana, que diz: “compaixão é fortaleza, ter bondade é ter coragem”.
Mais que isso, em Os Tempos, há um refinamento coreográfico sutil que não se faz da noite pro dia e que vem sendo construído silenciosamente como uma agulha pontiaguda no sentido de nos tocar e fazer refletir de outro modo. O que nos leva, quase obriga, a entrar na apresentação em outro estado sensorial. Tentar, pelo menos. Digo melhor, adentrar lá num estado de disponibilidade para o encontro e a troca.
A saber, o espetáculo Os Tempos, da Cia da Arte Andanças (CE), faz parte da pesquisa Coreografias Nordestinas – algumas escritas estéticas e críticas (FUNARTE / Minc).
Texto publicado originalmente no dia 16 de junho de 2009, no caderno Vida & Arte, do Jornal O POVO (CE).
ERRATA: este texto impresso, com versão on-line no referido jornal, refere-se aos cinco trabalhos mais representativos para a dança contemporânea local da Cia. da Arte Andanças (CE), de um total de quatorze espetáculos, apresentados nos dezoito anos de existência da companhia, e não dezessete como consta no texto.
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