Foto: Divulgação.

Certos espetáculos da chamada dança contemporânea brasileira, tensionados pela linguagem da performance, como Batucada, de Marcelo Evelin e Demolition Inc., emancipam o público quando o convoca para uma experiência coletiva pouco habitual e, por isso, nem sempre amigável. A relação com o que atualmente vivemos no Brasil e no Mundo não é mera coincidência, muito menos contingencial. É uma realidade de fatos incontornáveis que preocupa.

Mas é esse atrevimento que pode turvar uma percepção já acostumada com o excessivamente comportado. E quando turva – de uma maneira que aquilo que acontece na cena pelos corpos-performers deixa de ser uma mera fruição contemplativa –, vem à tona uma relação que transforma e nos coloca em outro estado de percepção. Com apresentações pelo Festival de Teatro de Curitiba de 2016, dias 23 e 24 de março, no Espaço Cult, na capital paranaense, o espetáculo questiona o senso de comunidade e multidão em suas dimensões artísticas e humanas.

Neste trabalho do coreógrafo brasileiro Marcelo Evelin (Teresina/PI) com seu coletivo Demolition Inc. (Amsterdam/Holanda), com integrantes locais selecionados (cerca de 40 pessoas), evidencia-se uma dança que se faz contemporânea porque busca articular corpos juntos em suas individualidades coletivas. Ao fazer isso, coloca o público em estado constante de autoquestionamentos que humanizam. As preocupações estéticas de Marcelo Evelin com o que pode emergir como dança de corpos políticos vem se consolidando, como movimento artístico, em trabalhos anteriores ao espetáculo Batucada, como De repente fica tudo preto de gente (2012), Matadouro (2010) e Bull Dancing (2006).

Tal percurso faz-se coerente uma vez que para se pensar o coletivo, é urgente entendê-lo como individualidades que se inter-relacionam e se revezam nesse estar juntos e também ao mesmo tempo. Do ser estrangeiro fora do país, a questão que parece mover Batucada é como esse ser estrangeiro de si mesmo sobrevive no seu próprio país, sua terra natal, no caso, o Brasil em seus muitos Brasis. É nessa dimensão artística de corpos cotidianos que dançam e performam os corpos-guerrilha que batucam sons ora em uníssono ora em catarse.

Juntos é algo que nem sempre é possível. Fica visível e audível nesta dança-performance. Ao mesmo tempo é a potência desse estar juntos. Pois juntar-se ao outro e a outros necessita de uma caminho, de uma estratégia, um tempo que dilate a percepção, mas sem se comportar no sentir o outro pela falta impressão de comunidade que a ideia de tolerância traz. Tolerar o outro não é o mesmo que conviver, pois viver com o outro é encarar a estranheza e a parecença que nos é inerente enquanto humanos da mesma espécie.

Os muitos sons das batidas de madeira em latas e panelas é a revolta do corpo naquilo que ele mesmo tem dificuldade de expressar. Mas é nessa dificuldade de uma expressão coletiva que o espetáculo Batucada mina a ideia de que não há esperança para o viver em coletivo. Pelo contrário, com uma dramaturgia catártica, transforma o que poderia ser uma descrença numa “terceira via” que rompe dualismos de que há um lado que é bom e outro lado que é ruim.

É um experimento da guerrilha que profana a cena e traz uma questão para a curadoria do festival curitibano. O ruído que Batucada causa nos corpos envolvidos, inclusive o público, é um estrondo para espetáculos da chamada dança contemporânea brasileira que se comportam como corpos politica e artisticamente corretos. Esse muito bem comportado faz com que o fazer artístico perca sua capacidade de transformar e incomodar para serem apenas artes interessantes.

Pois, talvez, é nesta precariedade de Batucada que habita uma possibilidade que desestabiliza esse cenário preocupante das artes quando outra questão que emerge não é o das vítimas ou dos culpados, mas de uma constatação que precisa de outros modos de problematização, rumo à pergunta: por que as artes, como a dança, tem sido tratadas apenas como algo pacífico de se ver e sentir?

Joubert Arrais é artista-pesquisador, crítico de dança e professor universitário (Dança/Unespar).

Cena do espetáculo Batucada, em ensaio aberto, dia 22 de março de 2016, em Curitiba/PR (Foto: Joubert Arrais)

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