[Joubert Arrais]

Dançar com a cidade é atrever-se em outros mundos possíveis de acordos e ajustes provisórios para vivenciarmos o urbano como o gestar de uma outra corporeidade. Transmutar tal experiência para o palco com perspicácia é o que faz o espetáculo Fortaleza, da Cia Dita, que desbravou espaços da capital cearense para pesquisar e experimentar suas ruínas e resistências em uma reconexão com o passado para ressignificar o presente e imaginar futuros.

No corpo e na cena, cada uma das sete pessoas bailarinas aciona uma reflexão interventiva que está bem longe dos acomodamentos. Na apresentação da edição virtual da Bienal Internacional de Dança do Ceará, em 13 de agosto de 2021, percebemos um embrenhar-se coletivo como uma comunidade dançante dissidente no que há de mais ordinário e cotidiano em nossas Fortalezas distópicas diante do descaso com sua história arquitetônica.

Mas o que Fortaleza, de fato, nos mostra, revela e conecta no mover-dançar de coreocorpografias? Os tempos e as intensidades da experiência com a cidade, empreendida pela companhia cearense e o coreográfo Fauller, em colaboração com o artista e fotógrafo Régis Amora, não se limita a um trabalho de campo ou mera intervenção urbanística. A respiração presente na cena é corpo de resistências que nos coreografa até naquilo que está ausente. Não por acaso que o espetáculo revela as entranhas memorialistas de quem vive a cidade como um “outro corpo”.

Tanto que há um jogo dançado e coreográfico que tece acontecimentos cênicos de corpo-imagem e imagem-dança como experimento de afetos, comoções e cumplicidades. Em Fortaleza, o corpo-cia-dita respira, inspira, expira e transpira em tantas intensidades fortalezantes que, em certo momento, ficamos sem fôlego. São corpos ofegantes, de pés desnudos e cabeças encobertas, que nos arrebatam em um movimento repetido e cadenciado de um legítimo ritual “bonito pra chover”.

Pois tudo isso é da ordem do ajuntamento que se constrói na cena como uma prontidão orgasmática de uma cidade existente e desejante mas, muitas vezes ou quase sempre, oculta. Ao mesmo tempo, sentimos o que nos coreografa no espetáculo é também aquilo que está emergente nele: a cidade que nos pariu e já não nos abarca mais. Daí a errância cearense do mar aberto como horizonte e o sertão como trilha. A pulsação dos corpos à flor da pele transforma-se em arquitetura corporal movente, transitando entre estabilidades e instabilidades, ora coletivas, ora individuais.

Crédito da imagem: Guilherme Silva.

Para quem bate perna no centro da cidade ou busca rastros históricos de tantas demolições e apagamentos, a capital cearense é repleta de controvérsias, sabemos. Quantos espaços de memória foram transformados em estacionamentos? Quais edificações permanecem mas como territórios inacessíveis ao toque, cheiro e ao roçar da pele? Como estão as praças e ruas transformadas por ações de assepsia desumanizante? E o mar que nos olha como uma cidade que está às suas costas?

No seu dançar de encangamentos, Fortaleza tem algo de Corpornô (2013) no sentido estético-expandido e de Mulata (2014) no viés político-performativo. Contudo, o trabalho demonstra-se inaugural no modo que a Cia. Dita complexifica seu pensamento coreográfico, já desde de De-vir (2002), não apenas pela nudez como tessitura, mas no que esses corpos à mostra se arriscam no mobilizar criticidades para uma dança incorpada de cidades.

Assim, na contemporaneidade que desafia o viver urbano, a Cia Dita atualiza a cidade de Fortaleza quando nos lembra sem esquecer que, sim, precisamos acessar nossas ancestralidades no corpo a corpo onde habita essa tal Fortitudine e no dançar presenças, ausências e permanências.

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Joubert Arrais é artista da dança, pesquisador acadêmico e crítico de dança. Trabalha como professor da Universidade Federal do Cariri (UFCA – Campus Juazeiro do Norte) e do Programa de Pós-Graduação em Dança (PPGDanca), da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Colaboração e crédito da imagem: Régis Amora.

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