fotos: Estela Albani
Quando um solo de dança contemporânea traz uma pergunta como título, eis que nos mostra algo que move a criação, pois denuncia a vontade do/a artista que o dança de partilhar algumas respostas para outras perguntas. Já estabelece também com o público outro tipo de relação, menos sujeitada e mais emancipada. Como acontece no solo Sem o que você não pode viver?, de Ivana Menna Barreto (RJ), que fez, ontem, sexta-feira, 29 de agosto, a primeira apresentação das três previstas em sua passagem por Curitiba, no segundo piso da Casa Hoffmann, encerrando circulação que passou pelas cidades de Salvador (BA), João Pessoa (PB) e Belo Horizonte (MG).
Em conversa mediada por mim, Joubert Arrais, à convite da artista carioca, nesta sexta-feira, encontramos-nos juntos num aconchego de memórias atualizadas por Ivana nos quase 50 minutos de uma dança de muitos eus-outros com ela e, em especial, na maturidade de um corpo que dança performando escolhas e tensões. Sem o que você não pode viver? instiga pela força e intensidade da pergunta que nos leva a pensar as economias de vida, as pequenas coisas, nossas biografias ordinárias, muitas delas ditas simplórias, que se perdem em sua importância, nas acelerações do chamado mundo digital.
A síntese dançada que Ivana constrói tem a delicadeza cortante que nos faz estar juntos com ela, mesmo que na sensação e sentimento de angústia, como disse um rapaz presente na conversa após o espetáculo. Como, então, não se angustiar quando já não conseguimos viver com o menos, ou melhor, viver mais com menos coisas, essas economias tensionadas pelo que (nos) (me) é suficiente e o que (nos) (me) é necessário para vivermos? Outra pessoa presente, que se apresentou como filósofo, disse que não se tratava de economias, e confessou que as pessoas não se perceberem entre si é o que o angustia no mundo de hoje, citando uma situação onde, ao pedir informação a uma garota, esta o deu mas ainda caminhando, sem parar e olhar para ele.
É que uma pergunta leva a outra, sei, sabemos. Uma situação leva a outra também, idem. Mas nesse movimento, vamos encontrando identificações, mais que meras identidades fixas, vamos nos espelhando nas falas de Ivana que se movem com elas e nelas, essas falas-escritas-borrões-rastros de uma caneta quase falhando mas, ainda sim, escrevente. Isso já nos acontece quando o solo se inicia no primeiro piso, quando lá há uma escrita que se faz e se sobrepôs num texto do fôlder que também pode ser lido de trás pra frente, assim como se fez a dança de Ivana, a quem se percebeu: um regressar de gestos e movimentos que é se lançar no futuro enquanto presente vivo.
Construir uma dança que se engenha como autobiografias é desafiante porque não se trata de falar de um “eu”, muito menos de um “outro”. Mas criar uma dinâmica compostas de recordações pessoais, como Ivana fez encontrando com pessoas que não conhecia, mas que eram amigos/as de amigos/as dela. Assim: aquilo que conhecemos de nós mesmos interage com aquilo que achamos que conhecemos de nós mesmo, interagindo com aquilo que desconhecemos de nós mesmos. Basta olharmos uma foto nossa antiga, de quando éramos criança, ou um retrato de um desconhecido, que logo fazemos associações, já projetamos ideias, imagens, sensações.
Nesse me preparar para a mediação do solo de Ivana, fiz também minhas próprias questões. Algumas mais silenciosas, como senti de muitos na conversa na Casa Hoffmann, depois da apresentação. Silenciosas e gritantes, bom enfatizar. Mas também me reencontrei com uma leitura sobre o eu-autobiográfico, sentindo de forma clara e fruída a dança de memórias que Ivana autobiografou dançando, corporificando imagens mentais que são corpo em movimento.
Como bem diz o neurocientistas português António Damásio, na publicação portuguesa O Livro da Consciência (2010), de sua autoria: “Algumas das imagens da recordação ficam pelo caminho na mente, outras são recuperadas e realçadas, outras ainda são combinadas de forma tão habilidosa, quer pelos nossos desejos, quer pelos caprichos do acaso, que acabam por criar cenas novas que nunca realmente existiram“.
O solo de dança contemporânea “Sem o que você não pode viver?” é, assim, um acontecimento que, ao final, marca e demarca, em nossas memórias voláteis, outra pergunta para nossas dançasmundos: “Sem o que você não sabe viver?”, sabemos?
Mais informações, clicar abaixo:
http://www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br/agenda/sem-o-que-voce-nao-pode-viverr/
Marcelo Sena
Muito boa esta citação que você coloca do Damasio. Acho que essa conclusão dele tem estado presente em muitos trabalhos contemporâneos, de forma mais proposital.