O ano de 2009 iniciou seus primeiros dias dançando. Quero dizer, com ações artísticas de dança. Contrariando muitos que, talvez por desatenção ou mesmo pela falta de uma maior eficiência na circulação de informação, afirmaram não existir dança na cidade. Sobre isso, alguns comentários críticos sobre algumas destas ações são necessários, no sentido de uma amostragem de QUESTIONAMENTOS CIRCUNSTANCIAIS como IGNIÇÃO para uma REFLEXÃO mais ajustada ao entendimento de a DANÇA É UM CAMPO DE CONHECIMENTO. E no final, escrevo um pouco mais sobre o projeto Terça Se Dança, atualmente o espaço mais aberto para se experimentar ações dançantes e críticas.

Disritmia

No anexo do Theatro José de Alencar, durante os finais de semana (menos o último), foi apresentado o trabalho Disritmia, com a Companhia dos Pés Grandes, coordenada pelo jovem coreógrafo Heber Stalin. A montagem lembrou uma jam session, no sentido de uma grande celebração entre dança e música, como também configurou-se como um espaço de experimentação e descoberta para os dez integrantes. Nele, Heber, enquanto coreógrafo, mostrou que está num momento de se reconhecer como criador, testando coisas, tornando-as públicas, o que merece atenção aguçada naquilo que ele propõe como “disritmia pelo sapateado” (off-beat, “fora do ritmo, da batida”). Ao mesmo tempo que encabeça, desde 2006, uma companhia só para homens sem apoio oficial, mas que este ano pode acontecer, já que completam em breve os três anos de requisito para se canditar ao edital da Seculfor de manutencao de grupos. Requisito este que necessita ser urgentemente reformulado por ser inviável para a realidade de Fortaleza.

Mapas e Panoramas

No curso Dança e Pensamento, o módulo Mapas e Panoramas, de Gustavo Ciriaco, realizado na Vila das Artes, abriu espaço para se partilhar experiências, onde o artista apresentou boa parte do que tem vivenciado no Rio de Janeiro e também em suas andanças pelo mundo. Durante uma semana, exercitou-se o que filósofo Jacques Ranciére define como PARTILHA DO SENSÍVEL, que Ciriaco, em determinada aula, falou a respeito, e que aqui eu apresento uma brevíssima interpretação. Tal termo refere-se a uma partilha que busca o comum mas também demarca outros recortes sensíveis, no sentido de outras formas de experenciar as coisas do mundo. Nessa discussão, as práticas estético-artísticas são tidas também como políticas.

Momento Dança do Sesc Iracema

Uma ação vale mais algumas palavras de atenção. O projeto Momento Dança, do Sesc Iracema, veio com Quatros Solos para Dançar, que se tornou três nos dois últimos finais de semana, e que JÁ COMENTEI AQUI. Sobre ele, tenho ainda a dizer que, por se tratar de um encontro de similaridades das propostas artísticas de Silvia Moura, Paulo José, Carlos Antonio e Márcio Medeiros e que nelas ficou claro certo fio comum, trabalhos que tem inquietações especificas, mas que decidiram pelo o partilhar pela confissão, desabafo, performatividade.

Silvia é uma artista e educadora que tem no uso da palavra falada seu modo de agir politicamente, mesmo que, por vezes, a verborragia que se mostra no palco incomode ou fique no meu quase divã psicanalítico de alto teor performativo (de um dizer que é fazer). Paulo José, outro que usa a força da palavra como forma de desestabilizar um corpo que quer amar, que busca o amor, e que tem ou busca algum discernimento sobre esse estado.

Carlos Antonio, este que, no sentido maior da PERFORMATIVIDADE, fala pela ação de um corpo que dança, um corpo que dança e nesse dançar diz algo, fala bem alto sem mesmo conseguirmos ouvir qualquer ruído vocal. E Márcio, que traz no seu profícuo solo questões do fazer dança em Fortaleza/Brasil, no que alguns autores definem como “ZONA DE INDISTINÇÃO”, ou mesmo, o “NÃO-LUGAR” de Homi Bhaba. E, por conta disso, merece retomar a configuração original para perceber o que permaneceu desses deslocamentos de espaço físico e de escolhas estéticas adaptativas.

Terça Se Dança

O projeto Terça Se Dança, parte das ações do Momento Dança, do Sesc Iracema, foi o que mais me instigou nos debates ao final das apresentações. Fiz alguns comentários que, já soube, tocou nas fragilidades de quem ali fez dança ou pensou fazer dança, e de quem falou de dança de forma romantizada. Lá, quando falei que DANÇA NÃO É DIVÃ, referi-me ao fato de aquilo que faz rir ou chorar é importante, mas no sentido de essas (e outras) sensações em questões para se (e em si) investigar.

O neurobiólogo Antonio Damásio mostra bem isso quando distingue EMOCÃO e SENTIMENTO, interrelacionado ambos os termos. Segundo ele, emoção diz respeito ao ser sensibilizado por algo, na perspectiva neuro-motora; já sentimento é o ter consciência (certo discernimento) desse algo que sensibilizou. Sendo o artista a pessoa que mais percebe as alterações no mundo, cabe a ele essa reflexão para que questões pertinentes não passem em branco ou de um modo pouco ou nada problematizadas. E nesse perceber, que é ação, e não conseqüência do ato de perceber, o artista faz suas ESCOLHAS. Dessas escolhas é que se consegue criar as ENFASES, aquilo que desejamos comunicar, criar pontes de diálogo via NEXOS de sentido e possibilidades de significação.

De modo mais abrangente, o Terca Se Dança trouxe à tona a discussão sobre A DECISÃO DE DAR OU NÃO DAR CONTINUIDADE à ação de transformar idéias em pesquisa artística. Tem a ver em entender, ou buscar entender, que o espaço onde se apresenta uma obra, quer seja no palco arena ou italiano (ou mesmo na rua) não é um tribunal de contas, mas um momento único onde o artista pode testar hipóteses ou/e idéias, exercita o tornar algo pessoal em algo público. Na contramão disso, a decisão de não mais apresentar é legitima sim, mas, de algum modo, acaba sendo um ATESTADO DE ÓBITO. Por exemplo, se eu paro de regar uma planta, de adubá-la, ela resiste por um tempo até morrer; e mais radical, se eu simplesmente arranco a planta do vaso e jogo fora, nem lhe dou chances, o que passa a ser UMA QUASE EUTANÁSIA.

O que se faz necessário …

… um lembrete em relação ao frágil entendimento de dança e de arte como algo que vem de dentro; ou ainda, de que todo mundo pode fazer arte, de que qualquer um pode dançar (universalismo). Dança é uma ação artística com altos níveis de COMPLEXIDADE e TEOR REFLEXIVO, e seus artistas são os grandes fortalecedores desse pressuposto decisivo, estes que criam ambiências para que os ditos não-artistas possam ter experiências artísticas e mudar seus modos de lidar com seu cotidiano, com o mundo, com suas vidas.

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