(Foto: Allan Taissuke)

Em nosso tempo, a experiência da multidão nos mostra um mundo globalizado em esgotamento e saturação. Pelos noticiários ou/e in loco, presenciamos corpos que se agrupam numa atuação simultânea, na qual o (estar em) comum é circunstancial, momentâneo e, não necessariamente, partilhável. Nem por isso, ajuntar-se deixar de ser um ato explosivo, que só repete, inspira-nos o filósofo esloveno Slavoj Zizek, se forjado na tensão entre a farsa e a tragédia. Como proposta artística, tal experiência de muitas pessoas inicia uma conversa das mais valiosas com a estética/conceito “Multitude”. É o caso do espetáculo Vagabundos, que encerra temporada hoje (28), pelo Programa Quinta Com Dança do mês de janeiro de 2016, no Centro Dragão do Mar. Nele a cena, que tem direção assinada pela artista cearense Andréia Pires, é borrada e profanada no que nos há de mais familiar e bem rotineiro.

Nossa vida cotidiana é, de fato, um grande noticiário que nos atravessa e anestesia. Aquilo que nos parece real ganha status ficcional e, na contramão, torna-se ficcional como uma realidade outrora impossível. Exemplificar não carece de tanto esforço, já dizem manchetes do tipo “Menores de idade são barrados na entrada do Shopping Palladium, em Curitiba, agora em janeiro”; e ainda, “Cresce o número de motins em centros educacionais de Fortaleza em 2015”. Nesse contexto é que o espetáculo Vagabundos completa seus dois anos de existência, com sua primeira temporada “paga” neste mês, desde a estreia em 2013. Até então, a peça vivia de doações, parcerias e apresentações pontuais. A exemplo da campanha crowdfunding no seu primeiro ano, com financiamento via site Catarse. O objetivo era viabilizar participação no 14º Festival Estudantil de Teatro – FETO, em Belo Horizonte (MG), como único espetáculo do Norte-Nordeste entre os doze selecionados pela curadoria. Conseguiram apenas parte do dinheiro necessário. Mesmo assim, viajaram representando o Ceará.

Resultante de uma disciplina na graduação de Teatro da Universidade Federal do Ceará (UFC), ministrada pela diretora (na época, professora substituta do curso de Dança dessa instituição, ministrou a disciplina Corpo/Educação no Teatro), alunos e alunas criaram um continuum que atravessou fronteiras institucionais para pautar um diálogo instigante, ainda em construção, entre o artístico no ambiente acadêmico. Performers, também com formação em dança (não todos/todas), configuram um manifesto que aciona, de um modo perturbador, o conceito de Multitude, questionando precarização da vida humana –  capitalizada e subjugada, competentemente. É que, em certa medida, as gambiarras e os jeitinhos, com os quais sobrevivemos e insistimos, evidenciam boas estratégias sensíveis do ser e estar “vagabundamente” no mundo. A peça encara esse embate.

Tanto que a metáfora é valiosa, se lidamos com ela como experiência de/dos corpos ditos vagabundos, ordinários, marginais, legalizados na ilegalidade etc, em seus contornos biopolíticos. Pois somente no coletivo ela se torna escrita de vidas que marcam, em seus distintos relevos, presenças “artivistas” intra-enlaçadas e coimplicadas. De um gesto reflexivo individual (de partida, interior) fazem emergir uma política das diferenças no encontro com um gesto expressivo coletivo (de chegada, exterior). Algo que já se anunciava no bem-sucedido Cavalos (2010), criado por Andréia como trabalho final pelo Curso Técnico de Dança (na época, IACC/Secult-CE/SENAC), com co-criação do bailarino e performer Daniel Pizamiglio (também concludente do curso) e do realizador de cinema Leonardo Mouramateus (cearenses que atualmente residem em Lisboa).

Confessa Andréia. “Estou interessada no trânsito não somente entre teatro e dança, mas entre todos os espaços de criação em arte de modo expandido, onde as questões referentes à representação e a criação estão o tempo inteiro sendo friccionadas pelos acontecimentos da vida”. Esse tipo de atrevimento artístico, movido por desejos e afetos, é o que testemunhamos na peça cearense. Enquanto ação teatral e performática, Vagabundos baldeia a estabilidade desses eus-nós, tão usados no discurso empresarial, fazendo destes o revolucionário para mostras esses outros-eles em estado de exceção. Num quase salve-se-quem-puder (ou souber), orquestram dissensos e consensos, ora em rupturas, ora em descontinuidades. Compõem uma contaminação de excessos e carências, buscando desfazer certos sensos comuns, trabalhando com eles, bebendo deles, vorazmente, do assertivo ao inconsequente. Uma descrença no coletivo em nosso tempo, instiga a peça, parece não nos deixar pensar sobre viver em comunidade.

Somos desafiados, em Vagabundos, a pensar sobre isso em nossas alteridades, animadamente ou a contragosto. A montagem, encenada por cerca de vinte e dois jovens performers (talvez um pouco mais que esse número), politiza-se no lema que vislumbra um tipo de comunitarismo artístico. Nele as comunidades e a sociedade é que podem nos levar a um mundo de melhores hipóteses para a construção de outros sensos comuns, rumo a outras alternativas diante das alternativas dadas (muitas delas, já desgastadas). Podemos questionar com o espetáculo: por que algumas vidas valem mais do que outras se somos todos da mesma espécie? Que enquadramentos de vida, defende a filósofa norte-americana Judith Butler, fazem com que alguns e algumas mereçam nosso luto, e outros/as não? Nada é contingente por acaso.

A dramaturgia coreográfica é um noticiário vivo de corpos e cenas, engenhando uma trilha sonora inquieta e precisa. Todos estão entregues a uma cena ambicionada como comunitária. Sujeitos supostamente vagabundos “profanam” o verbo vagabundear como uma ação-manifesto cênico. Suas presenças são intensificadas no presente circunstancial. São corpos no e pelo coletivo. Trata-se uma profanação revolucionária (distinta da religiosa), que parte da irreverência e se mantém cúmplice daquilo que busca profanar. Não é a toa que, para encarnarem um manifesto, a performance transita entre o teatro e a dança. Nesse trânsito, constroem uma força artística que lhes é própria e, também, histórica/contextual. Na primeira década desse século, foram as performances de muitos corpos dançantes do Centro Em Movimento, o CEM, que mobilizavam o cenário fortalezense da dança, instigados e mobilizados pela direção da coreógrafa Sílvia Moura.

Vagabundos performa o incomunicável da vida precária. Não como impossibilidade, mas na potência de comunicar algo que nem sempre é fácil de comunicar, ser traduzido. Na torrente de emoções que nos faz sentir, o espetáculo reverbera um silêncio gritante em/de nós mesmos. Arrebata e cala, arrebata e fala, arrebata e mata, arrebata e arrebata mais, arrebata e faz rir; e nesses e outros tantos arrebatares, faz nascer certa esperança de que viver coletivamente ainda vale a pena.

Joubert Arrais é professor universitário, crítico de dança e dançarino-pesquisador.


* Texto publicado originalmente na versão impressa no Caderno 3, do Jornal Diário do Nordeste (Fortaleza/CE), em 28/01/2016, com versão online em Vagabundos performa o (jn)comunicável da vida

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