Sim. Não. Talvez. Estas três palavras significam, respectivamente: afirmação, negação e dúvida. Juntas, mas nem sempre harmoniosas, ainda bem, representam a lógica das escolhas, ou seja, aquilo que se deseja, rejeita e especula. Também são provocações do mais recente espetáculo do Núcleo de Doc-Dança, da Artelaria Produções.

Sim, Não, Talvez traz como desafio a apropriação do tema “paixão”, cujo subtítulo é Uma Doc-Dança sobre o Barravento ou a Devastação da Calma, tão presente no texto homônimo, de autoria do ator e dramaturgo cearense Ricardo Guilherme, que alicerça a obra. Faz hoje a última apresentação, às 19 horas, no Alpendre, e oportuniza questionarmos a relação entre movimento, texto e palavra no corpo que dança.

A crueza do início da apresentação é impactante. A cena desnuda, somente com os corpos pulsantes em ações-movimento e as luzes cambiantes de sombras. Anunciam um porvir, aproximam o público de seus anseios. Depois disso, deslocam-se para o lado aposto da sala, junto com os biombos, quatro estruturas de madeira que se assemelham a guarda-roupas adaptados.

Começam, então, a criar labirintos e fragmentar a cena em muitas outras, ora ampliando, ora limitando os campos de visão. As falas são diálogos intermitentes, o prenuncio de sins, nãos e talvezes. Paradoxo do sozinho com muitos e do acompanhado em solidão, como a “paixão, daquelas de uma pessoa ansiar a respiração da outra, asfixia”, diz um trecho de uma das falas.

É quando, infelizmente, muitos elementos armadilham a potência da dança, como a cenografia móvel, o texto dramatúrgico, o modo de operar na cena. As palavras são pronunciadas em muitos momentos e os corpos não conseguem se “libertar” delas. Elas não precisam ser ouvidas em sua exatidão, entendamos isso.

No entanto, não mudam (tanto) o corpo, não criam outras corporalidades, nem tangenciam outras espacialidades. É que o tema parece não mudar os corpos, no que se refere a outras qualidades de movimento e gesto desses corpos; e do ambiente que criam e com o qual se relacionam.

Esteticamente, o político no processo da montagem constitui propostas e idéias artísticas e coletivas. Acontece algo de extrema beleza, que é o testar e o experimentar materiais, dentro e fora do palco, abrir o processo antes da estréia (como fizeram há dois meses).

São seis bailarinos e a experiência de construir algo comum com maturidades distintas, considerando não apenas o “paulojosês”, mas “fabianês”, “alexssandrês”, “fatimês”, “gerlanês” e “joaopaulês”. Mas será que isso dá eficiência à autobiografia como estratégia documental, indo além de um olhar individual e pessoal? Informações autobiográficas (digo, histórias de vida), uma vez acessadas, podem, sim, transformar-se em movimento e em cena.

Dança e Palavra Em movimento(s)

Venho acompanhando já há algum tempo o trabalho de Paulo José. Desde Cessar Fogo (2003), sua primeira obra independente da Cia. Vatá (Valéria Pinheiro), este bailarino-performer vem alimentando o contexto da dança do Ceará com solos, duos e parcerias, inclusive com o Centro de Experimentações em Movimento, o CEM (Silvia Moura), com as “danças-desabafos”.

Vem também estreitando colaborações com Ricardo Guilherme, como, por exemplo, no desestabilizante Umbalangandãs. A criação da Artelaria demonstra isso com o Núcleo de Doc-Dança, uma de suas frentes de ação ao agregar jovens criadores nesta nova montagem.

As implicações são muitas. Justamente para refletirmos sobre o que vem a ser transformar a palavra em movimento dançado. É vital deixar-se distender pela palavra, dizer a palavra transformanda-a com ela, a partir dela, decompor e analisar materiais. Toda ação enuncia falas e corpos. Está tudo lá, pulsante, não está fora do espetáculo.

A relação entre linguagens é para ser de co-dependência, quer seja partindo de uma área específica, no caso a dança com o teatro, quer seja na interação com outras, por exemplo, o audiovisual, onde o vídeo chega sorrateiramente no final mas é pouco explorado na cena. Nessa dialética entre o sim, o não e o talvez que se encontra (e pode se encontrar) a tensão e as intensidades do que a dança pode ser quando ela prescinde do diálogo com outras artes, sente necessidade disso e se expande nessa crise-encontro.

Performar, então, é preciso. Especialmente, a palavra como texto narrativo. Das falas do texto é que nascem as subversões e nelas se engendram quando entendidas como dispositivos de ação. Performar a palavra é, nesse sentido, investigar no movimento a dramaturgia da dança no corpo. Mais que isso, apropriar-se da palavra transformando-a como exercício de tradução ou, segundo o poeta e semioticista Haroldo de Campos, transcriação!

Posto que uma possível poética da palavra no corpo dançante só pode deixar de ser um projeto se for no e pelo corpo que decide se organizar como dança. É antropofagizar de um jeito que estabeleça outros modos de enunciação e percepção. Senão, estagna-se no que pode ser um excesso de respeito ao texto, de um extremo cuidado que impede ou não deixa expandir.

Entendo ainda que ter apoio é viabilizar um projeto, tirar coisas do “mundo das idéias” e tentar realizá-las. É uma questão econômica quando a maioria dos artistas está acostumada ao mínino, ao pouco, ao insuficiente. Daí ser crucial uma criatividade que segue a lógica da vida: sobrevivência e adaptação.

Mas quando acontece o contrário, quando recebemos um bom apoio financeiro (a obra em questão foi contemplada pelo cobiçado Prêmio Klauss Vianna de Dança 2009, da Funarte; e o núcleo Doc-Dança, recentemente premiado no edital da Secultfor 2010), que implicações estéticas isso tem nas decisões e nas soluções artísticas? De outro modo, que grande armadilha pode ser tornar essa chamada política pública de editais?

 

Versão para este blog do texto publicado no Jornal Diário do Nordeste
Leia a matéria online no website do Diário do Nordeste

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