Foto: Marina Cavalcante
Espetáculo enquanto possessão e também existência. Mas esse corpo do espetáculo está vivo? morto? quase vivo? quase morto? Se não temos um corpo, pois somos corpo, este não pode nem deve ser lido como mero instrumento da cena nem objetificado. Mas sim digerido, ruminado, regojizado, masticado, degustado, provado, saboreado, vomitado e tantas outras sensações. poderemos, saberemos? Ainda assim, e apesar de tudo e dos perigos, é Marlene nos interrogando: estou viva nesse corpo do espetáculo?
Poderia explicar Marlene, biograficamente. Com ou sem autorização. Mas prefiro tentar sentir essa tal de Marlene no que aconteceu no palco do teatro do Centro Dragão do Mar dia 05 de fevereiro de 2019, esse ano que nos parece póstumo. Uma Marlene “de mentira” no transe-incorporado “de verdade”. Nem tanto de mentira, admito, mas nem tão de verdade, confesso. Foi nosso segundo encontro. O primeiro? Dois anos atrás.
O que temos é um corpo à beira de muitos mundos. Beira ao master class, o ensaio, o doméstico, e com esses espaços profana como é estar em cena como uma zona de indistinção, uma “experiência produtiva de indeterminação”, usando a expressão do psicanalista Christian Dunker quando discute o sofrimento como sintoma. Porque nos mostra que ainda é possível ser surpreendido em um mundo prescritivo. Pois quando vivenciamos os extremos, flertamos com esse entre que não quer chegar no centro calibrado, mas no transitar nesse entre enquanto escalas de um corpo que estabiliza e conversa conosco e, de repente, desestabiliza para ser outra coisa.
“O espetáculo está muito chato”, interroga-me Marlene, num dos dois minutos apenas, dentre os 120 minutos de espetáculo, em que baixei a cabeça para falar com uma amiga onde eu estava. À essa amiga eu disse: “estou no teatro, assistindo a uma dissecação”. À Marlene, respondi de prontidão: “o que eu quero? Eu quero os extremos”. Ela retrucou: “Você quer extremos? Pois extremos você terá”. E o DJ bota na hora um forrozão daqueles bem dançante. A cena e os corpos viram e ser reviram, quase como se colocasse tudo do lado avesso, um averso reverso. Quem está no controle? Noá? Marlene? Uma terceira Marlene fora da cena? Uma quarta, quinta etc?
Impetuosa, assim é Marlene, plural e singular. Talvez precisemos de mais tempo para “compreender” essa dissecação. É um termo forte de muitas significações. No momento presente do espetáculo, há um evocação mais que convocação. Quero dizer, não somos meramente chamados para fazer parte das interações, nem mesmo de ficarmos contemplativos na plateia. Mas nos é dada um sentimento de emancipação enquanto espectador. Jacques Racière, filósofo francês, já nos disse um pouco, talvez o bastante, por enquanto, a respeito disso. Artistas e público são, ao mesmo tempo, professorxs e alunxs. E mais, artista se torna público e professorx se torna alunx. Isso mesmo com todxs os “x” que precisamos, de uma vez por todas, nos acostumar.
Psicodrama? Talvez. Arte não é divã, é diva! E também divã-diva. Terapia de grupo? Também, e é até bom, pra exercitar esse estar junto no mesmo espaço. Pois 120 minutos de espetáculo não é para corpos fracos no sentido de corpos não disponíveis para um encontro que nem sempre vai ser acolhedor, dar somente aquelo que esperamos. Marlene é memória que transita. É até “jornalismo expandido” quando faz das falas e gestos um encenação ao vivo, sem videotape, sem filmagem, sem gravação. É tudo ali, no aqui-agora-acolá.
Faz-nos lembrar para não esquecer. E se esquecemos, nos faz lembrar para esquecer novamente. Marlene é uma cachoeira de consciências, uma experiência de quase morte que prontifica, desperta, mesmo parecendo que desilude. Essa senhora é um espetáculo póstumo recém nascido, grávido(a) de si mesmo(a). Como o livro que é escrito no momento exato que é escrito, porém, apenas publicado quando na dissecação que disseca o carnal e o espiritual. Disseca-me, se for capaz. Ou: quer ser dissecado? Pergunte-me como.
Marlene é um fantasma atrevido que disseca o espetáculo dando-lhe outro corpo, não mais morto ou mortificado, mas um corpo vivo e vívido, quase imortal. Sim, pois o espetáculo nunca acaba de tanta bifurcação e ambiguidade. Muitos entornos, muitos campos de forças. Um fora que intensifica o dentro. O dentro que intensifica o fora. E que está apenas começando, sempre a iniciar algo que não podemos nem saberemos controlar. Uma diva que nos disseca em tantas outras .
Nosso the-show-must-go-on antropofágico de muitas Marlenes.
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