De-vir é importante, especificamente, para a Cia. Dita. Com este espetáculo, a companhia transitou por outros ambientes de Dança, graças, inclusive à cumplicidade da Bienal Internacional de Dança do Ceará, dando visibilidade ao trabalho do coreógrafo e bailarino Fauller e, por conseguinte, ao que se esboçava em meados do século 21. Participaram de eventos fora do Brasil, como Move Berlim, em 2007, na Alemanha; e também em eventos nacionais, dentre eles, o Fórum Internacional de Dança (FID/MG) e, recentemente, o Festival de Dança de Joinville (SC). Circulou, ainda, em 2011, por boa parte do País, pelo projeto Palco Giratório (Sesc Nacional).
Tudo isso faz, fará, sentido só se admitirmos que toda obra artística é contextual. Nela há uma rede de relações internas e externas que determina condições específicas de existência e leituras críticas.
Foi em 2003 que escrevi meu primeiro texto de Dança no jornal: “Vir-a-ser orgânico” (caderno Vida & Arte, O POVO). Coincidentemente, lancei iniciantes olhares curiosos e críticos para De-vir, em sua primeira temporada, no Teatro do Dragão do Mar, e que oficializa o nascimento da Cia. Dita. Naquela época, a Dança era pauta quase inexistente na imprensa cearense (melhoramos, mas não significativamente). O mundo era movido pela grande virada do novo século, e, localmente, estávamos, como ainda acontece hoje, tentando lidar e experimentar palpites com o que era e é dito, naquilo que era e é vivenciando por nós, como “dança contemporânea” e “pensamento contemporâneo”.
Um ano antes, na estreia oficial, em 2002, Fauller apresentou parte da coreografia no Programa Terceiro Tempo, junto com Histórias Coloridas e Nudo Barro, das bailarinas e coreógrafas Angela Souza e Valéria Pinheiro (Cia. Vatá), respectivamente. Era a época do Colégio de Dança (1999-2002), coordenado pelo coreógrafo e professor Flávio Sampaio (atual Companhia de Dança de Paracuru), que fez parte do “extinto” Instituto Dragão do Mar. Fato este que nos lembra bem que, ainda hoje, não temos muitas garantias de continuidade das ações públicas de Dança.
De lá pra cá, e com muitos entremeios, a coreografia mudou muito pouco, em termos de organização lógica da movimentação. Corpos virtuosos a criar imagens que se assemelham ao não-humano, e que geram, em quem vê, emoções e sentimentos de estranhamento, repulsa e encantamento. Mas o que mudou, isso sim, foi o discurso da obra e de seu criador sobre ela. Na fronteira do olhar de quem observa, evidencia a nudez como jeito de criar situações não-convencionais e, principalmente, a intenção de expor o corpo no limite da competência técnica (e que tanto agrada a plateias distintas na aparente impressão de ser mero contorcionismo atlético ou circense).
Na verdade, a obra nos mostra os contornos e desígnios do corpo humano desumanizado e anatomizado em suas estéticas de existência . A coreografia partiu de uma reflexão filosófica, de trechos do livro ensaístico Os Monstros (1994) do filósofo português José Gil (que ainda reverbera sobre a obra, e não tanto nela) para chegar à ideia de um “novo design” do corpo, este entendido como media. Mesmo não assumidamente, está presente aí a ideia do “corpo como mídia de si mesmo e não apenas meio por onde a informação passa”, como diz a Teoria Corpomídia, desenvolvida pelas pesquisadores Helena Katz & Christine Greiner.
Tanto que, de um estar nu não erotizado como jeito de fazer ver/sentir situações pouco habituais, dadas algumas polêmicas (em 2003, escrevi o texto “Nudez Castigada”, também no jornal O POVO, falando da “censura” ao trabalho, para menores de 18 anos), a Dita vem mobilizando discussões a respeito do “estar sem roupa” (até podemos nos questionar se a nudez deixou de ser um passo da dança contemporânea). Nas itinerâncias do Palco Giratório, levou isso como tema para pensar criação coreográfica nas conversas “Pensamentos Giratórios”. Já em um texto, sem título, publicado no catálogo do FID, em 2008, Jussara Setenta, professora e pesquisadora de Dança, inicia dizendo “Corpos… nus…”, enfatizando a nudez de De-vir como ação performativa que tem como desafio de fazer-se ver mais em ideias que ideais de corpo na ação de dançar.
Pois, na arqueologia de uma coreografia, o que se conta não é a história da obra, mas das possibilidades históricas do saber que se engendra na e com ela enquanto prática, discurso. Cada vez que De-vir é dançando, algo se presentifica, uma nova rede de enlaces e significados emerge. É isso que torna viva a coreografia, faz dela uma obra aberta para percebermos aquilo que antes não tínhamos como, e que atualiza, a cada nova reescrita sobre a relação entre o que se diz e o que se pode dizer no que se faz como Dança na contemporaneidade. Eis um dos grandes desafios do pensar a Arte em nosso tempo.
Versão online do texto Arqueologia de uma coreografia, publicado no Caderno Vida & Arte, do Jornal O POVO (Ceará), do dia 02 de setembro de 2012.
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