Dançar junto e, circunstancialmente, juntos. Aceitar o convite para um encontro, até dois ou mais, já é viver uma relação. Chegar, ficar um tempo, ou muito, e depois partir para outros chegares e muitos (de)vires. Conviver assim é um desafio prazeroso e angustiante que faz da Companhia da Arte Andanças um lugar agregador.
São 20 anos marcados por dois momentos quase, cronologicamente, uma década cada. No primeiro, a gênese de “um abrir as asas e voar livres”, como diz um trecho do texto lido na festa de lançamento da companhia; no segundo, onde tive mais proximidade como artista-pesquisador, um engendrar de uma dança que incorpora “pessoalidades” e se implica, politicamente, no pensar criação artística e formação especializada.
A dança contemporânea cearense é um movimento forte, porém, recente. Nossas danças contemporâneas ora conseguem evidenciar outros modos de lidar com o corpo dançante, ora esse corpo que dança parece preso ao espetacular ou pré-fabricado. Contudo, as singularidades vêm de um processo de incorporação de práticas artísticas e criação de estruturas pessoais.
Mais ou menos assim, eu quero fazer dança, mas não sei como, mesmo assim vou resistir, não posso desistir, até posso, então tento mais um pouco, algo diferente, mas não tanto, ou mesmo igual, ver no que dá, deu certo, mas não tanto e continuo, permaneço … Não é diferente em outros ambientes de dança, porém, há distinções que vem de cumplicidades construídas no contexto de grupos e companhias.
Nesse movimento, a Companhia Andanças teve, e ainda tem, um papel importante no percurso de muitos que querem ser “alguém da(e) dança”. Admitir isso vem de um processo de conscientização do que vem a ser uma memória de dança, dentre tantas, na memória da dança de Fortaleza e do Ceará.
No que se refere à formação, a saudosa “turma de sábado”, por exemplo, possibilitou muita gente um contato mais próximo com a dança, com aulas ministradas pelos integrantes da companhia, que também se enveredaram pelo interior do Estado, inclusive Andréa Bardawil.
Ainda, alguns nomes atuantes no ambiente da dança de Fortaleza, do Ceará e, muitas vezes, do Brasil tem o (digamos, também grupo) Andanças na sua história. Alguns deles permaneceram e permanecem por aqui, como Isabel Botelho, Andréa Sales, Angela Souza, Acleilton Vicente (in memorian), Possidônio Montenegro e Sâmia Bittencourt.
Outros residem fora do Estado – Liliana Costa, Clarice Braga e Karin Virginia (as três em São Paulo); e Noara Rodrigues (Santa Catarina) –, como em outros países – Rosana Mara e Milton Paulo (ambos na Bélgica).
Já o ator e bailarino Márcio Medeiros (Teatro Máquina) é um dos mais recentes, além dos convidados, a exemplo de Carlos Antonio dos Santos (Grupo N Infinito), Janahina Santos e Tiago Ribeiro (ambos atualmente residindo em Salvador); e o jovem performer Daniel Pizamiglio. Somam-se ainda as colaborações de amigos artistas de outras áreas que Bardawil vem agregando, como o videomaker Alexandre Veras (juntos criaram o Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção), a escritora e artista plástica Elida Tessler (Rio Grande do Sul), entre outros.
Aliás, lembro-me bem de um texto escrito pela pesquisadora e crítica de dança Fabiana Britto (PPGDanca/UFBA) que fala da importância dos chamados “estúdios de intercâmbio” para a dança brasileira. Nele figurava o nome do Alpendre.
O coreógrafo e o coreográfico são dois pontos importantes, considerando a dança como poética do movimento. Tanto que enlaces estéticos com a literatura estão presentes na pesquisa coreográfica da companhia, como no espetáculo Capitães de Areia (1995), uma adaptação da obra homônima do escritor baiano Jorge Amado, que assistiu a estreia na época; e também A dança de Clarice (2000), inspirado no livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector.
Com o Tempo da Delicadeza (2002), o vídeo se fez presente e incorporado na rotina de criação, como também as artes plásticas, como na obra O Tempo da Paixão ou O desejo é um lago azul (2004), livremente permeada pelo jeito de fazer/viver arte do artista Leonilson (1957-1993), cearense radicado em São Paulo.
Para a nossa memória da dança, temos aqui uma que se faz valer não pelos espetáculos somente, mas pelas reverberações. São duas décadas de Andanças, ok. Muito? Pouco? Não sei. Antes disso? Muito germinar. Depois disso? Mais caminhos a serem dançados junto e juntos, onde as estabilidades são bem-vindas a considerar também o risco da cristalização.
Eis uma companhia de dança que gosta de estar em boa companhia, isso é verdade, e que fez de um certo pioneirismo a possibilidade de transformar uma trajetória cronológica num percurso artístico de muitas trilhas e tantos caminhos, entre perdas e ganhos.
Pois, de fato, só conseguimos levantar (boas) hipóteses, como a de parar, continuar, resistir, insistir, tentar, revoltar-se, subverter, comprometer-se, recomeçar, pulsar, desfazer, espreitar, resignar-se, revolver, profanar …, se estivermos em movimento com um tempo que é delicadeza, tempo que é da paixão, tempo que é/são tempos e tempos.
Crítica publicada originalmente no caderno especial do Vida & Arte, do Jornal O POVO, no dia 10 de abril de 2011, com o título “Em boa companhia”.
Deixe um comentário