Monica Lopes, Wanderson de Souza, Zayda Moraes, Karine Sousa e Eduardo Gasperin

O projeto Outras Danças: Brasil, Chile, Colômbia promoveu semana passada a mostra de trabalhos solos e duos, resultantes das residências com os coreógrafos José Luis Vidal (Chile) e John Henry Gerena (Colômbia), projeto este promovido pela Funarte e Secult/SecultFor/Quitanda das Artes, com direção artística de Silvia Moura.

Continuo aqui o movimento de perceber as montagens enquanto evidências de processos, trabalhos que acabaram de nascer e que precisam dessa relação de ser visto e se deixar ver, uma vez que o público faz parte do amadurecimento da obra e das questões que o artista e obra buscam apresentar/problematizar.

No terceiro dia, quarta-feira, 14 de dezembro, foram apresentados no Teatro da Boca Rica, em Fortaleza, as montagens …Vertigem…, de Mônica Lopes (São Paulo/SP); Racha, de Wanderson de Souza (Paracuru/CE); Estradas de Terra, de Zayda Moraes (São Luis/MA); Caso por Acaso, de Karine Sousa Costa (Flecheiras, Trairi/CE); e Entre Meios, de Eduardo Gasperin (Naviraí/MS).

Uma dança à deriva – Monica Lopes (Residência com José Luis Vidal

Monica Lopes dançou … Vertigem…, uma dança construída com espelho em moldura todo trincado. Moveu-se com o espaço a partir dos reflexos de luz desse grande espelho quebrado mas inteiro, pelo qual fomos sensibilizados pelo jogo de sombras quando ela movimentava o espelho.

Tive dificuldade e ainda tenho um pouco de perceber para onde Monica com este trabalho desejava/pretendia nos levar. Havia certo cansaço em seu corpo, certa hesitação, talvez daí vem o nome, vertigem. Uma dança à deriva, mas um corpo à procura. Olhar-se numa espelho quebrado é ver não apenas uma imagem de si, mas várias, em recortes diversos e diferentes, imagens transfiguradas geometricamente, pedaços de alguéns, intimidade de quem se olha no espelho à espera de outros eus.

Se esse era, de fato, o que queria causar, conseguiu apenas criar uma potência criativa e instigante, porque para quem era público, mesmo próximo sentado no palco, só conseguiu perceber os reflexos. Talvez alguém que teve a sorte de ficar mais próximo do espelho tenha conseguido adentrar nesse universo imagético e misterioso de vertigens de si que a obra buscou construir cenicamente.

Corpo desportivo – Wanderson de Souza (Residência com José Luis Vidal)

Wanderson de Souza mostrou na obra Racha um diálogo entre algo de seu cotidiano, jogar futebol, e a possibilidade de investigar os padrões de corpo e de movimento nesse jogo/esporte coletivo.

Não se trata tanto de ser o futebol seu tema, mas, a partir desse ambiente esportivo, evidenciar um tipo especifico de corpo e de como esse se organiza na cena. Se relacionarmos o dançar com o jogar, temos ai certa cumplicidade. Dança enquanto modo especializado do corpo se mover. Jogo como estratégias de relação entre corpos.

Mesmo sem problematizar essas questões no solo Racha, Wanderson fez valer a técnica do balé que construiu seu modo de lidar com o corpo. A escolha do nome “racha” pode ainda levar a obra, se assim quiser investigá-la, assim, só pra termos uma idéia, racha é uma partida recreativa de futebol, com regras livres, geralmente sem grandes preocupações com tamanho do local onde se joga e com as regras, uniformes, impedimentos, faltas, tempo de jogo, sendo tudo resolvido no consenso dos jogadores.

Logo, Racha, por ser um solo, trouxe no seu acontecer um idéia de coletividade individual de quem joga não só pra si, mas que pode também jogar para e com o outro.

Dança popular, corpo político – Zayda Moraes (Residência com José Luis Vidal)

Zayda Moraes tem uma corporalidade forte, construída e alimentada na cultura popular. É um corpo político engajado, e não apenas preocupado, com as questões de identidade. Dentro e fora do palco, ela e sua dança ritual evidenciam um corpo de mulher negra ativista nordestina brasileira.

Em Estradas de Terra, percebemos esse paradoxo entre arte/dança e ativismo, que oscila entre a preocupação artística e o engajamento político. Em um dos ensaios, percebi a força do seu corpo dançante, que na roda envolveu quem estava lá perto, até mesmo que não estava. O tambor traça o ritmo e o corpo é reverberador de energias e intensidades.

O desafio é que, no palco e com platéia, o ritual pode perder justamente esse caráter energético e intenso, como aconteceu, em certa medida, na apresentação final no palco do teatro da Boca Rica. Não é algo ruim, uma vez que outros fatores estão envolvidos, em mais de um mês de residência.

Contudo, é preciso olhar atentamente para o trânsito entre o que acontece fora do palco e dentro do palco. São acontecimentos singulares, então, como devemos percebê-los em seus procedimentos, para a energia e intensidade serem outras, mas não menos fortes e reverberadoras?

Para casar dançando – Karine Sousa Costa (Residência com John Henry Gerena)

Karime Sousa Costa fez por merecer a chuva de arroz que levou do público. Em Caso por Acaso, ela mostrou com competência sua força dramática, um corpo que transita bem entre o trágico e o cômico, até mesmo, com momentos onde o teatro e a performance, outras duas linguagens, fizeram-se presentes.

O solo foi iniciado com uma seriedade, como um cerimônia mesmo, corpo compenetrado, movimentos exatos e lentos, um vestido de noiva, o desejo da mulher em casar, vontade de casar dançando (ou dançar cansando), nem que seja com ela mesma, o ritual do casamento como uma grande festa que ainda permeia o imaginário de toda mulher.

Confesso que o titulo criou em mim expectativas. Fiquei pensando da voz de Tetê Espindola cantando “Escrito nas Estrelas”, que diz no refrão “caso do acaso”. Depois pesquisei e encontrei uma música com o nome igual, “Caso por Acaso”, da dupla César Menotti e Fabiano. Como lidar então com essas expectativas que criamos em relação às obras que assistimos? Inibindo-as. Como o artista, em suas escolhas, pode considerar que ele também gera expectativas? Não sendo inconsequentes.

Por isso enfatizo tanto a importância na escolha do nome da obra como ativador de idéias e associações, mesmo enfatizando também a necessidade de inibir nossas expectativas quando formos ver/assistir um trabalho artístico.

Assim, como aconteceu no solo de Karine, poderemos ser surpreendidos em suas emergências (algo não previsto mas engendrado no acontecimento da obra).

EMOÇÕES E SENSAÇÕES – Eduardo Gasperin (Residência com John Henry Gerena)

Entre meios, de Eduardo Gasperin, foi um momento emotivo de um artista em situação de palco. Fez valer o prazer e a loucura de estar lá em cima, um corpo em catarse que criou sensações diversas no público, quando se move e se relaciona com espaço pela água que era lançada para todos os lados, escorrendo até as arquibancadas.

Entretanto, temos que ter cuidado e rigor em não considerar a arte apenas como um lugar que gera sensações, principalmente, na dança, que acontece no corpo e que é no corpo que problematizar questões, instabiliza visões de mundo. Fiquemos atentos aos usos de elementos cênicos como a água, que já é considerado um clichê da dança contemporânea, uma vez que, na maioria dos casos, o uso não se justifica nos tantos esforços e acaba com causar certos constrangimentos.

Estarmos conscientes dos clichês ou mesmo do uso recorrente de algum elemento cênico por outros artistas ajuda-nos até mesmo a usá-los em nosso favor, percebê-los como uma tendência a ser questionada, evitando, assim, gastarmos energia à toa com aquilo que menos importa. Se assim fizermos, poderemos investir no cênico sempre lembrando e nunca esquecendo do corpo como problematizador e evidenciador de um mundo de desejos, vontades e discursos.

E assim, ser e poder ser corpo, esse lugar politico que nos localiza no mundo, ser um corpo que danca e que, ao dançar, é pensamento, é corpo pensante/pensamento.

 

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