Foto: Lucas Soares/divulgação

Certas danças constroem presenças outras. Desestabilizam percepções turvadas e nos libertam da descrença no coletivo. Bebem do popular, elemento vital da cultura, e com ele (se) reinventam. Vivenciam crises e (se) expandem. São dançares que resistem e bordam arte política de inacabamentos e continuidades que dignificam. “A invenção do baião teimoso” (2012) é uma dessas danças, uma feitura de memórias vivas de outrora e de agora da Cia Balé Baião, há mais de duas décadas em atuação na cidade de Itapipoca, concomitante com a história da dança no Ceará.

Na sua investigação em dança contemporânea, dizê-la plural é compreender que sua força, neste espetáculo, nasce desses momentos de instabilidade e da ação em coletivo. Incisivos e ritualísticos, desfazem, quando dançam, a imagem distorcida do que vem a ser o “popular”, articulando-o em muitas das variações culturais, libertando-o da conformação dos discursos competentes de desempenho que enrijecem as identidades como estanques. Há dobraduras nos corpos mestiços que a cultura tensiona, visceralmente. Coexistem com tantas curvaturas, banham-se de um sentimento arengueiro de corpos dançantes. Enroscam-se com a natureza. Suas palavras e gestos também o fazem.

Cada dança tem seus maneirismos de formas, em movimento com suas dramaticidades, tecidas de jeitos e modos distintos de outras tantas. Contudo, há danças que se importam mais com as estéticas descolonizantes, porque estas as constituem, desde sempre. É o caso das danças que mantêm um intenso e vívido diálogo com as culturas e matrizes populares. Com elas, tornam-se singulares, particularizam-se. Sendo elas contemporâneas brasileiras, e da qual a Cia Balé Baião pertence com rigor e ousadia, nelas se evidenciam relações existentes mas, historicamente, invisibilizadas. Dançam desfazendo muitas das armaduras coloniais, barroquizam-se em corpos-memórias.

Na dança balé-baião, o popular é encenado em corpos-agentes, coreografados socialmente. Neles e com eles, constatamos fortes elementos da cultura popular, mas não como espelhamento nem mera fascinação, e sim como questionamentos e mestiçagens que não cessam de se recriar a partir do que já existe: transformam-se na turbulência. As “empatias”, ações que consideram o outro (Richard Sennett), são mobilizadas nas cenas com os corpos dançando e performando identidades cambiantes, dissidentes. As relações empáticas desses baionenses dançantes emergem da cooperação com aqueles e aquelas com os/as quais se mantêm, teimosamente, Outros/as. Convergem-se em diferenças, não as impõe falsas calmarias. Cada cena do espetáculo é um “statement”, uma declaração política da estética desse compromisso de estar(em) junto(s).

Tanto que, nessa feitura que dança e se (des)dobra em malemolências e paragens, apercebemo-nos de que são e estão corpos caboclos e mestiços, bordadores de atravessamentos da cultura. Como em junho último, deste ano, no Quinta com Dança do Dragão do Mar, pela Temporada Arte Cearense. No dia 04 de agosto, no Centro Cultural Bom Jardim, realizaram uma apresentação única, nessa persistente itinerância artística, achegando-se, cada mais, a outras audiências. Encontros estes que complexificam seu dançar-mosaico memorável de intensidades étnicas, já desde 1995 a 2012, continuando de 2013 até hoje.

O contemporâneo deixa de ser um mero qualificador cronológico de datas. Transforma-se em dispositivo de tempos a abrir espaços. E dá a ver um campo de forças enredado de “aderências-distâncias intempestivas” (Giorgio Agamben), emaranhado de “simultaneidades” e “ausências-presenças-emergências” (Boaventura de Sousa Santos). Isso mesmo: “Dança Balé Baião, 20 anos em companhia”, diz, com propriedade, o título do livro comemorativo, publicado em 2015, com concepção e coordenação do artista, coreógrafo e pedagogo baionense Gerson Moreno, através do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2013.

Pois, quando dançam, é/são corpo político de engajamento no movimento, no gesto e no mundo. Vamos nos politizando na medida que somos atravessados por uma dança encarnada de vivências, estéticas e empatias. É desses tipos de dança que tomam partido, posicionam-se no mundo, sem medo dos inacabamentos. Neste espetáculo, as assinaturas são afro-indígenas, negras, caboclas, brasileiras, cearenses, nordestinas, brasileiras, assim como nos outros trabalhos da companhia, como um lugar onde se convergem tantos códigos e séries da cultura (Amálio Pinheiro).

(Fotos: Luiz Alves/divulgação)

De forma contundente, existem e se fazem existir. Corroboram para uma dança que nos emociona, acionando outros sensíveis, partilham comoções e corporalidades dissidentes que co-movem. Baldeiam nossa percepção do que se tem sobre a chamada dança contemporânea brasileira. O popular que encenam, longe de ser popularesco e folclorizado, enlaça-se de várias formas que hibridizam parecenças e dissonâncias, porque se mestiçam nas diferenças e nas desigualdades. Os objetos cênicos não são meros bens culturais, mas artefatos incorporados por quem os gera e os consome num dançar contemporâneo entremeado de relações locais e globais.

Prestemos atenção. Corpos que dançam cenicamente não são um mundo à parte. Cada espetáculo traz algo que lhe é intrínseco. Tidos por muitos como enigmas, não precisam ser desvendados. A contrapelo, são modos de existir que se atravessam pelas crises também econômicas, concomitantes com as criativas, políticas, estéticas. Uma vez que preocupa ver determinados trabalhos de dança contemporânea sendo enquadrados pelo discurso competente neoliberal como intocáveis, ou quase.  Trata-se de uma questão “biopolítica”, porque é no corpo que o projeto neoliberal se concretizou, disciplinarmente (Foucault).

Dançar em tempos de crise comunica essa provocação ambígua. As camisas de partidos e emblemas político-partidários, usadas pelos artistas em uma das cenas coletivas mais fortes do espetáculo, revelam que podemos nos transformar nesse estado de muitas crises, e não somente uma, de carga negativa economizante. E mais, compreender as contribuições e os fracassos do “capitalismo artista” que infla a experiência contemporânea, hiperestetizando-a (Gilles Lipovetsky & Jean Serroy).

Ver corpos dançando com esse figurino assertivo e elaborado, mesmo que muitos considerem que não o são, por se mostrarem muito cotidianos aos nossos olhos acostumados de rotinas, possibilita escapar do que nos impede de captar a realidade como ela é: de que vivemos um momento de grandes retrocessos. Os lemas das causas sociais de outrora parecem mais atuais do que nunca, e isso é assustador, ao mesmo tempo que causa indignação. Porque fomos levados a acreditar que triunfamos, mas não. Acreditamos que estávamos em condições igualitárias, mas não. São estas, dentre outras ilusões, de um “triunfalismo” e uma “descontextualização” (Boaventura de Sousa Santos).

As gramáticas de dignidade da pessoa humana estão sendo atacadas sem dó nem piedade. O que se propaga, massivamente, é o ponto de vista dos vencedores. Diante desse trabalho da Cia Balé Baião, essas ilusões são desmascaradas e nos fazem enxergar que o presente é contingente (incerto, duvidoso) e de contingências (possibilidades de que alguma coisa aconteça ou não). Uma vez que – na hipótese de que fomos, de fato, iludidos por esses discursos triunfalistas e descontextualizados – gestos e movimentos que compõem “A invenção do baião teimoso” mobilizam uma outra compreensão. Muitas opressões ou dominações de tempos passados hoje permanecem reconfiguradas e vendidas como emancipatórias ou libertadoras. A realidade é percebida erroneamente, porque, na verdade, ela é sinistra. Saímos do espetáculo com outra dança a coreografar outras lentes, menos turvas. Podemos e saberemos a dimensão?

Não por acaso que, nessa sua invenção, a Cia Balé Baião se reinventa e teima de novo, alimentando-se da (bio)grafia desses corpos-mundos cearenses nordestinos brasileiros latino-americanos de Itapipoca. No conturbado Brasil em que nos confronta, impiedosamente, a escrita balé baião é imprescindível, porque se atualiza, neste fatídico ano de 2017, como uma dança possível no coletivo.

 

*Joubert Arrais é dançarino, crítico de dança e professor universitário. Leciona no bacharelado em Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA/IISCA), em Juazeiro do Norte (CE)

**Texto originalmente publicado com o título “Corpos políticos“, nas versões impressa e online do Caderno 3, do Diário do Nordeste, em 05/08/2017.

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