Fotos: Cristiano Prim

(Escrita de Anderson do Carmo, construída com a oficina/laboratório Escrita Crítica com a Dança, ministrada por Joubert Arrais, a partir da apresentação do solo Fole, da curitibana Michelle Moura, com apoio do Itaú Cultural, através do Programa Rumos Dança 2012/2014. As duas ações aconteceram no 7o. Múltipla Dança 2014, realizado de 20 a 25 de maio de 2014, em Florianópolis/SC)

 

Uma presença pequena, serena e austera entra quase casualmente pela nossa direita e ocupa o espaço que a algum tempo se tornara foco de nossa atenção. Nós: os que estávamos sentados. A figura de Michelle Moura permite ser olhada devolvendo o olhar: sentada ela nos encara com algo entre curiosidade e mera espera em sua expressão, e, por alguns segundos, tudo que há é essa expectativa sustentada por nossos olhares.

E então tudo muda.

Presença que vira relação, que vira espera, que vira respiração, que vira invasão, que vira vento, que vira voz, que vira espaço, que vira expulsão, que vira vazio, que vira suspensão, que vira desaparecimento e – por isso – vira presença. Troca acelerada entre dentro e fora; a repetição que faz o mesmo virar outro opera numa relação de controle-para-gerar-excesso onde se leva a cabo – onde se realiza – uma impossibilidade e um modo outro de relação com o mundo, logo um modo outro de existir, se inaugura.

A deliberação de Michelle é de respirar mais do que precisaria, sua escolha é de hiperventilar. O que daí decorre é um exagero no trânsito dentro-fora, duas instâncias bem definidas quando anteriormente a artista se apresenta ao nosso olhar: Michelle se dá a ver quase como se assemelhasse e confundisse com um de nós; a exceção dos pés que tocam o chão sem intermediário algum, nada indica que algo fora do normal vá acontecer. Roupas “de agora” envolvem o corpo-Michelle e o separam do de fora.

E, apesar da não importância que se poderia creditar a um figurino que muito bem poderia não o ser, talvez – talvez! – as primeiras pistas para a articulação de um sentido em Fole apareçam aí: mais da pele se dá a ver conforme transcorre a dança. Casaco se vai, cabelos são presos e, por fim, o torso fica a mostra.

Não bastasse o contraste entre a ação radical que leva a cabo e a “displicência” com altera o figurino que a envolve servindo como lembrete de que todo o excesso ali mostrado é tecnicamente controlado, somam-se um conjunto de linhas negras feitas à tinta irradiam do peito para braços e mãos. O importante deste dado é que não há tentativa de ilusionismo: a “origem” de tais linhas pareceram ser a meu olhar um microfone de lapela colado com esparadrapo transparente em cima do osso externo.

Artifício que potencializa o orgânico e precário em forma de voz que da garganta da bailarina escapa. São camadas, camadas e mais camadas onde se aproximam, mesclam e afastam controle e exagero, precisão e descontrole.

Há, evidentemente, uma transformação perceptiva, uma alteração de estados psicofísicos e para além de um performance do corpo há em Fole um manuseio de subjetividade: a dança de Michelle Moura é um tufão de alteridades e, sentados na plateia, somos convidados a habitar por 40 minutos o olho deste furacão.

Em Fole, a ação do feedback, da retroalimentação – onde o efeito de uma perturbação inclui a maximização da própria perturbação – matéria e emoção trombam-se e se aglutinam numa encruzilhada: não há ação que não seja desencadeada por controle técnico, não há movimento que seja outra coisa além de engajamento de musculatura, ossada e vísceras em uma performance de dança e, no entanto, a coleção de devires e permanências que se nos apresentam são de uma tal natureza perturbadora que a vazies sucessiva de som, luz e corpo que encerra a obra são bem vindas.

Fole, assim como toda expulsão, é sofrido; nos coloca em um vazio e nos deixa em outro, mas sua repetição que transforma, seu ensimesmamento que faz e refaz em outros é fenda aberta de desencadeamentos, é vão pelo qual afluem e de onde escorrem um sem fim do que pode vir a ser. Ao mesmo tempo é puxão de tapete em nossa certeza de si: seriamos breve estabilidade que já terá se transformado tão logo essa frase tenha acabado.

Se o movimento é de expulsão e se somos deixados no puro e denso breu, num grande não saber, enigma que nos abraça e quase sufoca, talvez seja o caso de aí permanecer por hora: num território onde não há certezas e no entanto não é qualquer coisa que pode ser. Poderia ser – neste grande não saber em que Michelle Moura nos deixa – aquilo que persiste, aquilo que como vestígio do que se passou e como pista do que pode ser resta depois de uma performance tão pungente como Fole.

Anderson do Carmo é bailarino do Grupo Cena 11 Cia de Dança desde 2010 e graduado em Teatro pelo CEART-UDESC (2012). Realiza interlocução teórica em contextos de criação, formação, pesquisa e documentação. Nos últimos anos, visita em textos a obra de artistas como Karin Serafin, Marcela Reichelt, Michelle Moura, Luis Garay e Cristian Duarte. 

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Outras informações:

Múltipla Dança: 

http://multipladanca.webnode.com/

http://youtu.be/f3j0_GQiyoM

Fole, de Michelle Moura:

http://youtu.be/t-Vy6yr7RNU

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