Dois trabalhos da Mostra Disseca, do Núcleo Dirceu, começaram, ontem, sexta-feira, 27 de agosto, uma pequena temporada de três apresentações cada um, que vai até domingo agora: Jogo de Dentro, de Wilena Weronez, e Mefisto Brasileiro, de Fábio Crazy da Silva. Dois solos que questionam o corpo em estado de crise e se singularizam ao criarem fluxos distintos – o primeiro existencial e o outro, cultural. Sem ter lido nada sobre os trabalhos, eu exponho aqui algumas impressões intempestivas para fomentar a conversa-debate que se realizará no último dia de apresentações.
Em Jogo de Dentro, Wilena coloca o corpo em cheque no confronto eu, eu mesmo e o mundo que me rodeia. O ambiente que se relaciona é um ringue de carvão com um saco de boxe no centro. Neste solo, o corpo busca uma exaustão, confronta-se com limites, tangenciando tensões e subversões, visto que há uma regularidade desse corpo que não cabe mais em si ou talvez não tenha como se libertar de si próprio.
Um jogo interno cujo fluxo é interrompido e parece não saber mesmo como atualizar limites, suas entradas e saídas, que é indeciso ou pouco assertivo, parecendo não aceitar o desafio de que é no risco e na subversão que os limites reconfiguram-se. Não só na e com a cena, mas principalmente nesse e com esse corpo que se digladia num chão duro e pueril de carvão. Eis, então, nessa metáfora uma imagem que remete a um corpo anestesiado pelos sistemas industriais de produção, um corpo serializado que não mais se reconhece como individuo e que lutam em vão para emergir de uma massa inerte.
No segundo trabalho, o corpo cria outro fluxo quando se desnuda para se mostra como corpo-manifesto. Mefisto Brasileiro é, assim, um corpo que se integra ao sistema (no caso, capitalista, dadas tantas referencias, inclusive a do banho de coca-cola na nuca) e, nesse integra-se, faz-se apocalíptico para novamente se integrar. Há uma espécie de metamorfose subversiva, um lúdico realismo que beira o humor, mas que é nesse humor que traz uma força irônica de dizer: olha aqui, eu existo! Nesse movimento, uma frase veio junto com o acontecer do espetáculo, de que o lixo é o troco. Mas troco de quê?
Talvez na relação corpo e cultura podemos encontrar algum indicio para esse lixo que é troco. Vivemos num mundo de desperdício, que todos somos educados a desejar o que não é necessário, que precisamos consumir, consumir, consumir para nos sentirmos aceitos e felizes. E para isso, temos que desperdiçar, desperdiçar, desperdiçar para alimentarmos a máquina nefasta do capitalismo. E de quem é o troco, as sobras? Fábio nos mostra que é na lógica do estar à margem ou na periferia que as relações de poder ficam mais evidentes e visíveis.
E não só isso, que o modo como as pessoas sujeitadas subvertem esse lixo que se transforma eu útil, uma espécie de utilidade lúdica ou mesmo uma crítica desdentada a um sistema que corrompe e, ao mesmo tempo, nos dá formas de também corromper. Pois se não temos como não ser hipócritas, de não conseguirmos escapar dos fingimentos de que está tudo bem; que sejamos, então, hipócritas conscientes para uma ironia cortante feito navalha!
É isso, por enquanto. Vamos aqui nos falando. Idéias para ruminarmos junto e juntos!
Texto publicado originalmente no site do Núcleo do Dirceu, no dia 28 de agosto de 2010, com o mesmo título – Para início de conversa: Corpos criam fluxos distintos.
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