O mês de abril é o mês da dança, com programação intensa em algumas capitais brasileiras. No entanto, o mês de março, dito mês das Artes Cênicas, ela esteve presente na programação local, pelo reconhecimento de que a dança também é uma arte cênica: “dança cênica”.
Um assumir-se como tal tanto nas ações em Fortaleza como no interior do Estado. É algo estratégico, reconheço, pois possibilita mais espaço para os artistas e também para as pessoas se familiarizarem, principalmente, com os espetáculos de dança contemporânea. Até para que possamos perceber o que há de contemporaneidade nessa produção. Porém, tal decisão ser cênica pode, a longo prazo, ser empecilho para a dança ser problematizada em todas as suas nuances, ou seja, no que se refere às suas questões políticas, estéticas, educacionais e econômicas, e a conexão entre tais questões.
Logo, o uso da terminologia “artes cênicas” evidencia, entre outros aspectos, que a dança ainda ora está à margem, ora está incluída, trazendo certo reconhecimento do que o dito termo vem consolidando historicamente como uma ação em comum.
Muitos espaços institucionais ainda mantêm tal denominação. Alguns deles com ações pontuais e especificas que têm, de algum modo, colaborado para o entendimento da complexidade da dança como área artística e acadêmica. Três casos exemplificam isso, em âmbito nacional. No setor público, temos a Funarte (com os editais Klauss Viana e Bolsa-Arte de Criação Artística e de Produção Crítica) e, no setor privado, o Itaú Cultural (com o programa Rumos Dança, com sua quarta edição aberta para inscrições).
O terceiro dos casos é um exemplo histórico dentro do contexto da Universidade, que é o primeiro mestrado em dança do Brasil, em funcionamento desde 2006, na Escola de Dança da UFBA, este que representa um indício de um processo reflexivo sobre as especificidades da área e sua existência em outros espaços acadêmicos. Tudo isso é sintoma de que a própria dança, pela sua produção artística e educacional, já reivindica outros modos de operar com ela.
Agora vejamos o problema do uso do termo e sua falta de abrangência e, pior, na sua incapacidade de dar conta de uma área tão complexa, tão imbricada de relações como é a dança, como o é também o teatro. O próprio teatro poderia se alforriar desse termo, mas parece não querer tanto, pois a dança tem lhe dado muitos bônus. Mas e a dança, como fica seu bônus ou seria mais ônus?
Em 2004, um texto da pesquisadora Christine Greiner (“Novos Rumos para as Artes Cênicas”), escrito para a edição do Rumos Dança 2003/2004, apresenta questões pertinentes das implicações políticas do termo artes cênicas em relação à diversidade da produção contemporânea, em especifico, sobre a dança e a performance, tidas como sub-áreas do teatro.
A pesquisadora paulista também discorre sobre a criação do curso de Artes do Corpo, na PUC-SP, da qual fez parte da criação, junto com a critica e professora de dança Helena Katz. Nessa empreitada, ambas tem fortalecido a área da dança via orientações de pesquisas de mestrado e doutorado, segundo um exercício de acolhimento; e, assim, contribuído bastante para o fortalecimento de ambas as áreas, principalmente a dança.
Partindo desse breve exposição, lancemos um olhar desconfiado para o que foi a programação do mês das artes cênicas em duas programações em Fortaleza e um edital de seleção para espetáculos.
A programação do Centro Cultural do BNB organizou o “momento dança”, distribuído ao longo da programação. Digamos que uma tentativa de incluir a dança nas ditas artes cênicas. Isso, ação de inclusão vinda do reconhecimento de uma produção de dança cênica local e que, certamente, abre algum espaço para espetáculos de dança.
Inclusão que, no entanto, careceu de contextualização do porque de a dança estar ali, sabendo que a organização do evento mal soube apresentar, por exemplo, o espetáculo Os Tempos, da Cia. Andanças, quando sequer falou que tal trabalho tratava-se de um espetáculo de dança e os por quês deles fazer parte da programação, tanto na apresentação na sede do centro cultural, como também na apresentação realizada na sede da Edisca. Ou seja, a dança está e não está ao mesmo tempo, quero dizer, está como algo postiço, do tipo, se não estivesse, questiono: faria alguma diferença? Talvez sim, mas penso que não.
No Sesc, a situação é bem mais problemática, principalmente quando este tem um projeto focado na área, que é o Terça Se Dança, já há cinco anos. Em março, teve inicio o Festival Palco Giratório Brasil / Fortaleza, com mostra nacional e local. Na mostra nacional, três espetáculos de dança. Na local, apenas um dentre os dez selecionados (os outros de teatro adulto e infantil).
Ainda, no folder da programação deste festival, foi anunciado o Overdança, estilo maratona de espetáculo, inspiração vinda da Mostra Cariri das Artes (que já mudou de nome várias vezes, e já foi chamada de Mostra de Teatro). Anunciado, mas que não aconteceu, por conta de uma confusão nas datas, só percebida no dia do evento. O mais grave é que, em abril agora, mês da dança, por conta ainda da programação do Festival Palco Giratório, não haverá programação no Terça Se Dança.
Tudo isso indica algo a ser reivindicado, não o seu dito lugar de arte cênica, mas de que suas especificidades vão além do cênico e reconhecer isso é poder estar junto do teatro (também cênico?) de um modo menos hierárquico e marginal. Historicamente, temos o que é denominado por alguns autores como “dança teatral”, que não é apenas a dança que sobe no palco, mas que se organiza segundo lógicas semelhantes ao do teatro tradicional (uso de luz, cenografia, entre outros elementos). Então o termo dança cênica faz algum sentido, mas não totalizante como denota seu uso.
Eis algumas provocações. Que produção local se reconhece no termo? Quais as que não se reconhecem e os porquês? Se dança cênica é a dança que sobe ao palco, feita para ser apresentada em um teatro ou espaço público, como então reconhecê-la como produção de conhecimento? Como ficam as outras formas de existência da dança, que não se limita ao cênico, mesmo entendendo cena de modo bem abrangente? Mais, como fica a experiência em dança, bem maior e complexa do que está em temporada no palco?
Enfim, a Dança para ser reconhecida não precisa ser só cênica, basta ser dança, o que já muito e bastante. Uma arte cênica, sim, mas antes de tudo, arte que acontece no e pelo corpo que dança e que, nesta ação, questiona e soluciona provisoriamente problemas que lhe são singulares e próprios, e que podem criar boas pontes de diálogo com as outras áreas. Algo como se eu conheço a mim mesmo ou busco isso, o relacionamento com os outros acontece de modo mais respeitoso e ajustado, pois eu saberei o que de mim pode dialogar, o que de mim pode se transformar nesse diálogo. Ou, como sabiamente discorreu Edgar Morin no livro Cabeça-feita, “distinguir para unir”.
Não há certezas, sei, mas acredito que as possibilidades vão ser bem maiores.
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